sábado, 20 de maio de 2017

Intervenção Urbana como forma de Resistir e Existir

Foto Ana Lia Rodrigues

CUYAVERÁ MAGIC OESTE WORD


Por Everton Britto.*

A capital do Pantanal, também conhecida como a capital do lucrativo agronegócio, onde em um mesmo Estado articulam diferentes ecossistemas (Pantanal, Cerrado e Floresta Amazônica), foi “agraciada” no final do ano de 2016 com mais uma obra inaugurada antes da conclusão. O prefeito que esteve no poder por quatro anos quis deixar algumas plaquinhas pela cidade, mostrando que arregaçou as mangas e trabalhou pela “Cidade Verde”, título há muito tempo dado pela mídia governamental, mas será que merecemos? – A obra em questão é a revitalização da Orla do Porto de Cuiabá.
Ainda guri, vim morar em Cuiabá, era verão de 1996, saía do interior para a cidade grande e tudo era tão grande no meu pequeno olhar. Lembro-me da visita ao Mercado Municipal do Porto e lembro-me de um almoço em algum flutuante no rio Cuiabá do lado das margens de Várzea Grande, era possível ver os esgotos caindo no rio. Essa imagem marca o meu olhar de criança, de lá pra cá não me lembro de grandes ações em favor do rio, algumas ações isoladas de limpezas da margem do rio feitas por escolas e entidades não governamentais em que tive o prazer de participar de algumas. Reforma de pracinhas, a construção de mais uma ponte, ampliação de outra para passar o VLT e só, porém o rio que dá o nome para a cidade sempre me pareceu esquecido pelos governantes. Na escola, aprendi que devemos preservar a natureza, os rios, as matas e isso não é só um exercício de bondade é uma necessidade para a continuidade da humanidade.
Eis que resolvem olhar para um dos cartões postais mais importantes da Capital, tudo isso em decorrência do progresso prometido pela Copa do Mundo de 2014. O projeto era lindo! Uma orla que ajudaria na preservação do rio e revitalizaria a área em torno para que a comunidade se sentisse segura e ocupasse esse espaço junto à natureza. As projeções nas maquetes virtuais eram de encher os olhos e o coração de esperança, mas a verba foi desviada e a Copa passou. Processos de adaptação da obra, mais dinheiro público – a primeira verba a quem se destinou? – e, praticamente passando a faixa de prefeito para o sucessor, a obra é inaugurada com um grande show nacional.
Na semana seguinte a inauguração os primeiros problemas vem à mídia: faltam lixeiras e o lixo dos visitantes se acumula por toda parte, os postes de iluminação não foram chumbados, o lindo cenário para o povo é um grande espaço de obras. Passado algum tempo, finalmente vou visitar e vejo um descaso com o rio, com os animais, com a Cuiabá antiga, com os moradores do Porto e com os moradores de rua. O esgoto continua lá a céu aberto jogando lixo no rio, vi peixes se alimentando de enormes excrementos, os moradores de rua viraram guardadores de carros. Vi uma maquete que reproduz os lindos casarões cuiabanos, o espaço deveria servir de ponto de encontros com informações históricas e de turismo, com acesso Wi-Fi, tomadas e espaço para a contemplação do rio.
A maquete dos casarões antigos onde todos querem fazer uma selfie, já apresenta infiltrações apenas 4 meses depois de inaugurada, as tomadas e o Wi-Fi nunca funcionaram nas oportunidades em que estive por lá. Deixando de lado os problemas estruturais que a obra apresenta, podemos pensar noutros fatores que tangem a obra. Os casarões tentam reproduzir os que estão no centro velho da cidade, mas os do centro histórico estão abandonados em sua maioria, ruínas que impossibilitam uma boa selfie e nos obrigam a transitar por lugares “perigosos”. Há também misturas arquitetônicas, janelas de estilos diferentes que não fazem parte da história da cidade. E de dia é um dos poucos lugares que se pode parar, pois falta sombra em toda orla.
O calçadão foi ampliado para atender mais visitantes e implantar alguns comércios, e no processo foram derrubadas algumas árvores da margem do rio e outras árvores sofreram podas assassinas, em decorrência do descaso com a natureza alguns sinais já são visíveis da degradação ambiental. Em vários locais o solo está afundando, a terra aos poucos vai em direção ao rio e, segundo especialistas, se nada for feito uma grande chuva pode contribuir para sumir boa parte da orla revitalizada. Nesse cenário desanimador podemos encontrar uma felicidade?
Várias árvores foram plantadas. Ufa! Palmeiras imperiais margeiam a orla embelezando ainda mais o cartão postal. O problema é que as lindas palmeiras não fazem sombra, o problema é que as lindas palmeiras não são nativas, o problema é que restaram poucas árvores nativas que tem a possibilidade de fazer sombra, o problema é que quem projetou não deve sair de dentro do seu carro com ar condicionado, o problema é que não têm como caminhar em Cuiabá sem a sombra das árvores. Um lindo lugar para visitar após às 18h, um lindo lugar para registrar os peixes se alimentando de fezes, um lindo lugar para fazer selfies com as palmeiras imperiais nativas, um lindo lugar para conhecer um pouco mais dos lindos casarões abandonados de Cuiabá, um lindo lugar que está desmoronando, um lindo lugar para pensarmos política, um lindo lugar para vivermos o agora.
A intervenção urbana Cuyaverá Magic Oeste Word realizada no dia 8 de abril na orla do Porto de Cuiabá pelo Coletivo a Deriva, fruto da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas: Atrações Temporárias e Estéticas Emergentes na Cidade do programa de Pós Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO, da Universidade Federal de Mato Grosso, ministrado pela professora Doutora Maria Thereza Azevedo, possibilitou aos transeuntes e aos internautas das redes sociais, que de alguma forma dialogaram com a intervenção, uma reflexão sobre política, natureza e arte.
A intervenção teve início alguns dias antes pelas redes sociais. Divulgamos um pacote turístico ao estilo parque de diversão temático. Convidávamos a população para aproveitar as maravilhas que fazem parte da orla revitalizada:

O Pacu, a Onça Pintada, o Tuiuiu e muitas lendas do Porto estão te esperando no Cuyaverá Magic Oeste Word! Divirta-se explorando a incrível flora nativa composta de belíssimas palmeiras imperiais, viaje com tranquilidade e segurança pela maquete em tamanho real das fachadas dos casarões que estão no centro histórico da cidade abandonados. Expie os peixes do lindo rio Cuiabá se alimentando de esgoto e ainda descanse nas sombras das lindas árvores que compõem um dos principais cartões postais da cidade. O Passeio guiado será no dia 8 de Abril, data em que comemoramos mais um ano da capital do Pantanal, esperamos vocês a partir das 08 horas da manhã, depois do tchácobolo! Descontos especiais no ingresso pra quem registrar os belos buracos que fazem parte do seu trajeto. (Texto divulgado nas redes sociais).
  
Durante o processo de construção da intervenção, fomos provocados a refletir a nossa relação com o corpo que habita essa cidade, a construir desvios que possibilite sair da rota fixa buscando assim, uma crítica ao modo de operar capitalista. Escolhemos um fragmento dentre vários levantados em debates – revitalização da Orla do Porto – nos apoiamos em relatos de memórias e nas intervenções governamentais operadas naquele espaço, num processo colaborativo, nos propusemos a construir um olhar crítico que de alguma forma colaborasse para um deslocamento no olhar do cidadão que vive a cidade.
Essa necessidade de intervir / ocupar / existir / resistir se constrói conforme percebemos que os gestores públicos não levam em consideração a necessidade do povo, da cidade e da natureza. Obras são realizadas a custo de muitos desvios e de forma impactante para os que os cercam. A sensação que nos toma conta é que estamos de escanteio para que as selfies sejam bonitinhas. Para Guattari (1986, 1992) o capitalismo é caracterizado por um determinado modo de produção de subjetividade: “a subjetividade no mundo atual permanece massivamente controlada pelos dispositivos de poder e de saber, que colocam as inovações técnicas, científicas e artísticas a serviço das figuras mais retrógradas da sociedade.” (COSTA, MAGALHÃES, 2011).
Somos uma multiplicidade em constantes atravessamentos rizomáticos que nos compõe e nos atualiza o tempo todo, entendendo a subjetividade como matéria-prima de produção e que esse processo é inseparável do processo de produção do mundo faz-se necessário criar desvios para que a subjetividade singular não seja engolida pela subjetividade capitalística, buscando assim criar os próprios modos de referência, as próprias cartografias, inventar práxis que possibilitem brechas na subjetividade dominante.
O mundo capitalista engendra o modo como o homem se relaciona com o seu corpo e com o meio, um movimento que reduz o homem a engrenagem de um sistema que deve trabalhar sem afrouxar os parafusos, não sobra espaço para outro movimento, nos vemos reduzidos a seres manipulados como fantoches que operam e trabalham para a manutenção do sistema. O homem é visto como número, como força de trabalho comercializável em detrimento de um processo existencial que tenta impedir a construção de novos modos de sensibilidade de relação com o outro, com o meio e consigo. A recusa desse sistema opressor possibilita o processo de singularizar.
A intervenção urbana Cuyaverá Magic Oeste Word foi a forma que encontramos para dialogar com as intervenções da subjetividade dominante que vem ocorrendo em nossa cidade. Propusemo-nos a uma ruptura e reapropriação sobre a subjetividade capitalística. “Nessas produções de subjetividades não hegemônicas, rompe-se com o território fechado do instituído, da neutralidade e dos regimes de verdade pré-estabelecidos, fechados e hierarquizados” (Coimbra apud COSTA, MAGALHÃES, 2011). Foi uma forma de resistência e de recusa ao que está posto, ao cenário Magic, a violência à natureza, ao homem engrenagem, as formas de ocupar e viver a cidade, buscando uma forma de se libertar do controle asfixiante da ordem capitalística.

Referências:

COSTA, Joana Dar’k e MAGALHÃES, Maria Janilce Oliveira. Cartografias da Subjetividade Contemporânea. 16° Encontro Nacional ABRAPSO, UFPE, Recife – PE, 2011.

BERENSTEIN JACQUES, Paola.Corpografias Urbanas. IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil, 2008.

GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Vozes: 4°Edição, Petrópolis – R J, 1996.

ASSUNÇÃO, Thaiza. MPE investiga risco a usuário; Prefeitura terá que dar solução. Em Cotidiano/Orla do Porto. Disponível em: < http://www.midianews.com.br /cotidiano /mpe-investiga-risco-a-usuario-prefeitura-tera-que-dar-solucao/293362 >. Acesso em 12 de maio de 2017.

Pacote Turístico Cuyaverá Magic Oeste World, Disponível em: <https://www.facebook.com/events/1235031446613439/>. Acesso em 12 de maio de 2017.

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*Membro da Solta Cia de Teatro (Cuiabá – MT), Bacharel em Artes Cênicas (UNESPAR-FAP, Curitiba – PR 2014), Aluno especial da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II: Atrações Temporárias e Estéticas Emergentes na Cidade do programa de mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT, Cuiabá – MT 2017).

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