domingo, 21 de maio de 2017

Revitalização da orla do Cuiabá de cima para baixo – ou “as sobras da Copa...”



Por: Glaucos Luis F. Monteiro [1]

Algumas reflexões sobre a intervenção urbana Cuyaverá Magic Oeste World: um porto de fantasia, na orla do bairro do Porto, em Cuiabá. Atividade surgida das discussões geradas na disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas: “Atrações Temporárias e Estéticas Emergentes nas Cidades”, sob a orientação da Prof.ª Dra. Maria Thereza Azevedo, do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (PPG-ECCO) da Universidade Federal de Mato Grosso. A intervenção ocorreu justamente no dia 8 de abril de 2017, aproveitando as comemorações do 298° aniversário de Cuiabá.

A estratégia da intervenção acadêmica, já devidamente explicada e esmiuçada em nosso blog, justamente inspirada em um cenário que sugere os antigos casarões cuiabanos, foi a de um evento fake criado/divulgado em rede social – com diversas pessoas (não alunos) confirmando presença. Tal ação, desenvolvida como atividade da disciplina, ainda poderia ser classificada como intervenções de Culture Jamming (Chitto, 2017).

As reflexões surgidas em sala de aula apontaram diversas críticas as obras realizadas pela Prefeitura de Cuiabá: falta das sombras das árvores, fachadas cenográficas (sendo que os velhos casarões do centro histórico estão em ruinas, abandonados), inexistência de bebedouros públicos (numa cidade onde a média das temperatura está sempre acima da casa dos 30°), diversas irregularidades nas obras apontadas pelo Ministério Público e CREA, falhas de projeto, além da análise de se tratar de mera “espetacularização urbana” criada com fins duvidosos ainda nas vésperas da Copa do Mundo de 2014. A obra, orçada em R$ 28 milhões, projetada para ser uma das atrações turísticas locais da Copa do Mundo, foi entregue somente em dezembro de 2016.

Falar do descaso para com o patrimônio histórico de Cuiabá já se tornou “lugar comum”; a denúncia do historiador, professor e vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso Lourembergue Alves, feita em 2000, comentando sobre a destruição e descaso oficial pelo patrimônio histórico cuiabano, parece extremamente atual ainda nos dias de hoje: “Este mesmo processo de destruição vem se dando ainda hoje, muito mais acentuado do que ontem. Vários antigos casarões foram destruídos” (Alves, 2000).


Igreja matriz de Cuiabá e Av. Getúlio Vargas, anos 50
Foto: Acervo NDIHR – UFMT


Demolição da igreja matriz de Cuiabá, 1968 – uma persistente cicatriz na memória local
Foto: Lázaro Papazian - Arquivo Público do Estado de Mato Grosso

Retornando ao Porto, o termo utilizado pela Prefeitura “Requalificação Urbana” é um termo bastante recente, associado à evolução das disciplinas do Urbanismo, e se liga ao interesse crescente pelo patrimônio histórico que ocorre em diversas regiões urbanas pelo planeta. Requalificação trata-se, portanto, de uma “forma de atuação associada à cultura urbana e à capacidade de atração e desenvolvimento sustentável dos territórios, tendo em vista a regeneração dos tecidos físicos e sociais” (Camarinhas, 2017); nesse ponto de vista, a requalificação no contexto urbano “deveria ser mais do que um processo ou uma forma de atuação, mas sim um objetivo, um desejo” (Camarinhas, 2017).


Pescaria no Porto – Cuiabá anos 1970
Foto: Arquivo Público do Estado de Mato Grosso

Várias cidades por todo o mundo possuem ruas, zonas ou bairros históricos possuidores de diversos estilos arquitetônicos (barroco, medieval, art nouveau, etc.), geralmente protegidos por leis de tombamento – por serem patrimônio cultural importante. Entretanto, esta proteção oficial geralmente implica que muitas das suas caraterísticas próprias e originais cedam lugar a ambientes “mais seguros”, higienizados e, por outro lado, inférteis, que “acabam por excluir práticas sociais, acontecimentos e rituais espontâneos, anteriormente com raízes locais fortes” (Uršič, 2012). No processo de crescimento das cidades, diferentes áreas perdem visibilidades, “são degradadas pelo mau uso ou pela má administração pública” (Bezerra & Chaves, 2014).


Cais do Porto – Cuiabá anos 50 (invisível hoje)
Foto: Secretaria de Estado de Comunicação Social - Banco de Imagens


Segundo o professor de Sociologia da Arquitetura da University of Ljubljana, Matjaž Uršič, projetos de reabilitação de incidência cultural, em contexto urbano, frequentemente “visam a criação de novas instalações, serviços, produtos e ambientes artísticos graças aos quais se torna possível à cidade adquirir uma singularidade diferenciadora” (Uršič, 2012). Todavia, no transcorrer dessas intervenções, acontece muitas vezes que “não resulta totalmente claro qual a estratégia de reabilitação a seguir, nem quais as consequências que ela irá ter na área envolvente, na respectiva estrutura social e na comunidade local no seu conjunto” (Uršič, 2012).

No decorrer dos processos (de proteção e/ou reabilitação) corre-se o risco de que as áreas alteradas percam partes importantes do seu valor cultural intangível, o que parece ser o caso da “Orla do Porto do Rio Cuiabá”, ao verificarmos algumas observações dos participantes da intervenção proposta:


“Estava novamente naquele lugar outrora tão diferente e que atualmente apresenta-se perante todos em uma configuração cenográfica, um cenário que sugere de forma muito sintética os antigos casarões cuiabanos, criando uma ilusão com o objetivo de remeter quem por lá passa, para o centro histórico cuiabano, onde os verdadeiros casarões se apresentam em verdadeiras ruínas, deixados à própria sorte pelo poder público” (Fernandes, 2017).

Ou ainda:


“Finalmente vou visitar e vejo um descaso com o rio, com os animais, com a Cuiabá antiga, com os moradores do Porto e com os moradores de rua. O esgoto continua lá a céu aberto jogando lixo no rio, vi peixes se alimentando de enormes excrementos, os moradores de rua viraram guardadores de carros. Vi uma maquete que reproduz os lindos casarões cuiabanos...

... um lindo lugar para conhecer um pouco mais dos lindos casarões abandonados de Cuiabá, um lindo lugar que está desmoronando, um lindo lugar para pensarmos política, um lindo lugar para vivermos o agora” (Britto, 2017).

Em conformidade com as observações de Silva, outro ativo participante da intervenção, nos projetos de intervenção urbana “o elemento humano não participa, não é um fim, e no nosso entendimento deveria ser” (Silva, 2017), aí podemos perceber novamente a perca de partes importantes do valor cultural intangível, ou ainda na conclusão de suas observações:


“Estar na Orla do Porto, ao invés de satisfação, vem o sentimento de não-pertencimento, contrapondo com as lembranças das vivências do passado: alegre, confortável. Hoje, "revitalizado", é um local para apenas "dar uma passada rápida", fotografar e tão somente. Somos turistas na cidade em que vivemos” (Silva, 2017).

Longe de qualquer objetivo saudosista, as intenções das fotos da Cuiabá antiga aqui, além de ilustrar o texto, pretendem esboçar um pouco do acervo (arquitetônico/cultural/afetivo ) que já se perdeu nos diferentes “processos de modernização” sofrido pela Cidade Verde.

Os projetos de revitalização urbana são necessários, não apenas para que se conserve toda a estruturação existente, de manter patrimônios históricos assim como a memória da cidade. Projetos de intervenção em centros urbanos se fazem sempre que é necessária a revitalização de áreas degradadas, que apresentem uma subutilização ou comecem a se tornar obsoleta. As intervenções deveriam acontecer sobretudo pela necessidade de restaurar a identidade dos espaços assim como a afetividade das pessoas com que se relaciona.


Referências

Alves, L. (24 de julho de 2000). A destruição do patrimônio histórico de Cuiabá. Fonte: Diario de Cuiaba: http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=13844

Bezerra, A. M., & Chaves, C. R. (2014). Revitalização Urbana: Entendendo o processo de requalificação da paisagem. REVISTA DO CEDS - Periódico do Centro de Estudos em Desenvolvimento Sustentável da UNDB, 01-16.

Brasileiras, C. (20 de maio de 2017). História de Cuiabá. Fonte: Cidades Brasileiras: http://cidadebrasileira.brasilescola.uol.com.br/mato-grosso/historia-cuiaba.htm

Britto, E. (20 de maio de 2017). Intervenção Urbana como forma de Resistir e Existir. Fonte: Cuyaverá Magic Oeste World: http://cuyaveramegicworld.blogspot.com.br/2017/05/intervencao-urbana-como-forma-de.html

Camarinhas, C. T. (15 de maio de 2017). catarina teles ferreira camarinhas. Fonte: catarina teles ferreira camarinhas: http://home.fa.utl.pt/~camarinhas/5RU.htm

Chitto, A. (20 de maio de 2017). Orla do Porto: Contextualização midiática e Culture Jamming. Fonte: Cuyaverá Magic Oeste World: http://cuyaveramegicworld.blogspot.com.br/2017/05/orla-do-porto-contextualizacao.html

Cuiabá, P. M. (14 de fevereiro de 2014). Prefeitura Municipal de Cuiabá. Fonte: Prefeitura Municipal de Cuiabá: http://www.cuiaba.mt.gov.br/projetos/conheca-o-projeto-porto-cuiaba/8156

Fernandes, E. P. (20 de maio de 2017). Orla do Porto, Um olhar de Memória. Fonte: Cuyaverá Magic Oeste World: http://cuyaveramegicworld.blogspot.com.br/2017/05/v-behaviorurldefaultvmlo.html

Silva, M. C. (20 de maio de 2017). Cuyaverá – um porto de fantasia . Fonte: Cuyaverá Magic Oeste World: http://cuyaveramegicworld.blogspot.com.br/2017/05/cuyavera-um-porto-de-fantasia.html


Uršič, M. (2012). Revitalização cultural urbana “de cima para baixo”. Revista Crítica de Ciências Sociais n. 99, 141‑166.




[1] Comunicólogo (UFMT, 1995), Especialista em Gestão Pública (UFMT, 2015), Mestrando em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT, 2017).

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