sábado, 20 de maio de 2017

Orla do Porto: Contextualização midiática e Culture Jamming

André Chitto

À beira do Rio Cuiabá, cercada de prédios históricos restaurados onde se instalam moradias e pequenos comércios, com palmeiras imperiais harmoniosamente distribuídas, canteiros com flores, espaço para atividades físicas. Discreto, encontra-se ali também o Museu do Rio com seu aquário. É essa a primeira impressão que temos da Orla do Porto, em Cuiabá. Isso é o que aparenta. Analogicamente, é o fenômeno kantiano, já a “coisa em si” não está sob os olhos de um cidadão comum; apenas os que possuem olhos privilegiados, aqueles que dão as “canetadas”, sabem o que realmente tem por trás da Orla do Porto. Eu não possuo esses olhos.

A documentação da revitalização da Orla teve início em 2013 e a estimativa de entrega era para a Copa do Mundo de 2014. Porém, como de costume no Brasil, o projeto só foi inaugurado, não concluído, em dezembro de 2016. Sobre isso, o secretário de governo do Mauro Mendes, prefeito na época, respondeu: “não é um projeto que necessariamente tem que estar pronto para a Copa”[1]. Os motivos do atraso foram vários, no início foi a desapropriação[2] de casas e comércios, autorização judicial para a obra, falta de recursos. No geral, foram problemas burocráticos, do sistema e de gestão da prefeitura. Segundo Marcello Oliveira, secretário municipal de Obras, "o ritmo foi reduzido nos últimos meses porque a prefeitura quis concentrar esforços na revitalização do Parque Tia Nair"[3].

O gasto esperado para a obra era de R$ 28 milhões, contudo, a Orla do Porto foi entregue com o custo final de R$ 16 milhões. As despesas foram reduzidas devido a algumas mudanças no projeto, sendo elas a troca de um muro de contenção e o uso da mão de obra dos operários da Secretaria de Obras Públicas no aterramento da área. O ex-prefeito Mauro Mendes explicou, na inauguração da Orla, que a obra foi concluída “praticamente com recurso de TAC[4] e recursos próprios da prefeitura”[5]. O ex-prefeito ainda destacou, no mesmo evento, que o enxugamento dos gastos da prefeitura auxiliaria na conclusão do projeto.

A revitalização da obra previa uma pista para bicicletas, um calçadão de 8 metros de largura para caminhada, arborização, estacionamento, espaços de convivência e entretenimento (parque, academia ao ar livre, quiosques, bares, restaurantes, dois píeres e um teatro de arena). Além disso, constava no projeto a construção de um novo aquário municipal, com uma área de 2,4 mil metros quadrados, e também a restauração das casas históricas do entorno da Orla.[6] Tudo isso pode ser visto no vídeo de apresentação do projeto Porto Cuiabá, que está no site da própria prefeitura:


Afinal, o que foi cumprido? Dos escopos do projeto, devo ressaltar que ficou para trás a construção do novo aquário. Com toda certeza, esse foi o motivo da obra não atingir aos R$ 26 milhões previstos, pois o novo aquário, além das grandes dimensões, iria receber um tratamento moderno, inspirado no Cubo D’água de Pequim. A foto abaixo, retirada dos slides da apresentação do projeto no próprio site da prefeitura municipal, mostram isso:

Imagem 01: Novo Aquário Municipal.

Como todos nós já estamos acostumados, houve diversas falhas na obra e irei destacar algumas delas: a primeira foi a má-qualidade do material do calçamento, diversos ladrilhos já estão quebrados[7]; a construção não cumpriu com os critérios para a acessibilidade, dificultando a locomoção para as pessoas portadoras de necessidades especiais (PNE), idosos, gestantes e pessoas com crianças pequenas; má-sinalização da ciclovia; acúmulo de água em diversas áreas da Orla; afundamento do aterro, que pode causar rachaduras; guarda-corpos ou corrimões que não são adequados para a segurança dos munícipes. Além dessas, o CREA-MT (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Mato Grosso), em um relatório, também apontou instalações elétricas improvisadas e sem isolação, construções em andamento sem tapumes e poços com tampas de concreto desniveladas, ausência de bebedouros e sinalizações de emergência, bancos que fogem às normas, entre outros[8]. Outro problema, após a inauguração, foi o cenário permanente fixado na beira da Orla. Sendo executado sem a exigência de licitação, o cenário custou R$ 1,5 milhões para a Prefeitura Municipal de Cuiabá[9]

Até aqui pretendi traçar o histórico da obra com o que foi noticiado na mídia mato-grossense. Como disse no primeiro parágrafo desse texto, não podemos conhecer tudo o que está por trás do projeto, mas o que tínhamos acesso foi o suficiente para atiçar as discussões em sala de aula. Na disciplina “Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II”, ministrada pela professora Maria Thereza de Oliveira Azevedo, foram destacados, entre tantos, dois elementos: a arborização com palmeiras imperiais e o cenário permanente que foi fixado na beira da Orla. 

As insatisfações com o cenário foram diversas, sendo elas o custo, a ausência de uma licitação, mas a principal foi a artificialidade, a ilusão do real. As reclamações com as palmeiras imperiais vieram da necessidade das sombras, pois as pessoas que passam por ali ficam expostas ao sol quente. Outro ponto foi o deslocamento da palmeira com a realidade do cidadão, pois não é uma árvore presente no cotidiano do cuiabano. Normalmente, elas estão localizadas nos jardins, edificações e casas da sociedade nobre.

Partindo dos problemas apresentados, decidimos fazer uma intervenção artística-poética-política no local, pois acreditamos que o patrimônio cultural, que está “costurado” na malha urbana, deve ser valorizado. Mesmo admitindo que o planejamento e gestão urbana do Projeto Porto Cuiabá tinham boas intenções, ao discutir a construção e os problemas da obra, entendemos que o resultado foi desastroso. 

Nossas estratégias, mesmo não sendo discutida por esse caminho, pareceram-me interligadas com as intervenções de Culture Jamming. Esse tipo de intervenção teve origem na década de 80, nos EUA, e sua tradução pode sem compreendida como bagunça ou confusão da cultura. Mark Dery, critico midiático e cultural, conceituou aplicando-a a “qualquer forma de jamming em que as estórias contadas para o consumo em massa são retrabalhadas perversamente”. Podemos identificar quatro tipos de estratégias jamming, sendo elas: 1) subverter anúncios publicitários; 2) criar notícias falsas; 3) alterar outdoors; e 4) áudio agitprop[10]

Entre as quatro, tivemos influência dos três primeiros – não utilizamos áudio na intervenção da Orla do Porto. No bate-papo em sala de aula, criamos um pacote turístico com o nome de Cuyaverá Magic Oeste World, cujo o mascote pode ser considerado uma subversão do Mickey, ícone da Walt Disney:

Imagem 02: Mascote do Cuyaverá.
Fonte: Vinicius Appolari.

A logomarca do pacote também foi subversiva. Foram utilizadas as fontes da Coca-Cola e da Walt Disney World. O próprio nome e slogan denunciam o objetivo da subversão. Além da menção à Disney, que figura um parque de diversões, temos a ideia de magia (fantasioso, ilusório, imaginário). O slogan “Um Porto de Fantasia” dá ênfase no irreal e artificial, aludindo principalmente o cenário fixo dos casarões antigos. 

Imagem 03: Cuyaverá Magic Oeste World.

O ato de colar sobre as palmeiras fotos de mangueiras ou outras árvores - que dão sombras, frutos e são presentes nos quintais cuiabanos – também pode ser vista como uma alteração ou subversão da atual imagem da Orla do Porto:

Imagem 04: Subvertendo a palmeira.
Foto: Ana Lia.

Outro aspecto importante da Culture Jamming é o tom irônico e humorístico com que as ações são aplicadas na intervenção. Segundo Henrique Mazetti, embasado por autores como Mark Dery e Valéria Ravier, a utilização do humor é uma libertação criativa, uma potência criadora, que fornece um aspecto positivo nas ações de “rebeldia” dos participantes. Além disso, é uma arma forte capaz de atrair a atenção do público e dos veículos midiáticos. Foi isso que aconteceu no Cuyaverá Magic Oeste World, chamamos atenção de quem passava pela Orla e, inclusive, fomos abordados pela mídia local – o texto da colega Ana Lia, que consta nesse blog, relata dois momentos. Ademais, outra situação de utilização do humor foi no post de divulgação do evento no Facebook:

Imagem 05: Descrição do evento no Facebook.


Mesmo que não levada ao “pé da letra”, a Culture Jamming teve forte influência nas estratégias e ações da intervenção na Orla do Porto. Como pode ser visto, a ideia de subversão esteve ligada em várias atividades praticadas pelos colegas e o elemento humorístico (irônico, cômico) esteve presente, principalmente, na parte publicitária (slogan, logomarca, etc). Assim, foi sucedida a Cuyaverá Magic Oeste World: expressando com ironia a ilusão que é a Orla do Porto de Cuiabá.



[4] Termo de ajustamento de conduta. Também conhecido como “Compromisso de Ajustamento”, é quando o causador de danos a interesses difusos, interesses coletivos ou interesses individuais homogêneos assume o compromisso de ajustar sua conduta às exigências da lei, mediante sanções.
[10] MAZETTI, Henrique. Entre o afetivo e o ideológico: as intervenções urbanas como políticas pós-modernas. Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 9, p. 123-138, 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

El cuidado y otros lugares comunes en acciones colaborativas y relacionales

Ligeya Daza Hernandez   (El arte es para este mundo, tiene que ocuparse de lo que en el ocurre, sea cual sea su trivialidad. Arden...