sábado, 20 de maio de 2017

Cuyaverá – um porto de fantasia




Marcelo C. Velasco e Silva
Fotos do autor
Uma das discussões que nunca pode sair de pauta é a que diz respeito ao uso que dos espaços públicos por parte dos diversos segmentos sociais. A arte tem um papel de fundamental importância nesse processo, pois atua como contraponto, criando a possibilidade da criticidade por parte de outros setores. A atuação do poder público na gestão do município, aliado ao setor privado, em todos os períodos da história, tem demonstrada a intenção de auferir maiores lucros, que não são e não serão usufruídos por todos os cidadãos da cidade.  
Em Cuiabá, diversos espaços são inaugurados com o propósito de se tornarem referências de turismo e de lazer para a cidade. As praças, por exemplo,  são locais de convívio social e convívio com   a natureza, que   podem   contribuir   para   a formação e agregação da sociedade, e representam espaços importantes para manifestações culturais, sociais e políticas.  Elas nasceram de necessidades de espaços para abrigar as festividades, encontros, atividades de troca, tratando-se de lugares de fácil acesso para a sociedade realizar as mais variadas funções, como ver e ser visto, para comprar, vender, fazer política e passear.
 Contudo, alguns desses espaços são alvo de análises e críticas tanto por parte da população local, quanto por parte de especialistas. Pois, o que se constata é que tais obras são construídas e entregues à população pelo poder público sem a preocupação de lhes proporcionar o mínimo de conforto e de proteção. O modelo de gestão praticada há décadas, não vem sendo alterado no sentido de ser de fato uma gestão para a população. Assim, não há como negar que a gestão municipal, assim como as de outras instancias, continua sob o controle de uma classe que se perpetua no poder e que faz uso dos mesmos mecanismos para lidar com os bens público.
O que acontece em Cuiabá é um processo urbano que Paola Berenstein (2009) chama de “espetacularização urbana”, fenômeno comum da contemporaneidade, que por sua vez é de uma estratégia de marketing, com o intuito de criar marcas, por meio de projetos de revitalização urbana, inserindo a cidade nas “redes globalizadas de cidades turísticas e culturais”. Segundo ainda a autora, a cultura é tratada como sendo uma “simples imagem de marca ou grife de entretenimento”. É feito um investimento em áreas abandonadas e degradadas, que se tornam pontos de atração turística e de lazer, trazendo assim uma valorização mercadológica. Um dos primeiros efeitos é a gentrificação: com a valorização do local, naturalmente a população mais pobre é deslocada para outras regiões. Esse processo já ocorreu em outras regiões da cidade, como por exemplo o bairro Goiabeiras. 
Visando tornar a capital, prestes a completar 300 anos, uma cidade que possui lugares que sejam “cartões postais”, várias obras foram instaladas e uma que chama a atenção é a Orla do Porto. A intervenção do poder público no local já deveria ter sido feita a mais tempo, pois a avenida Beira Rio, existe há mais de 15 anos, e além de estar a margem do rio, estava a margem da administração municipal. Mas o que foi implantado no local, foram os elementos que, em primeiro lugar, se repetem em praticamente todos os lugares que possuem um aporte de turistas, tornando-o não como algo genuinamente cuiabano. Em segundo lugar, até com a intenção de torna-lo cuiabano, as réplicas do casario, antes de ser um orgulho para os cidadãos da capital, é sim um motivo de vergonha, pois não é possível ignorar o fato de que o patrimônio histórico arquitetônico original, se encontra em péssimo estado de conservação, prestes mesmo a desaparecer. E em terceiro lugar, a prática do paisagismo que procura privilegiar os amplos espaços livres, e, portanto, sem cobertura, principalmente a vegetal, tão necessária em um lugar cuja incidência solar é alta na maior parte do tempo. Aliado a esse paisagismo, foi perpetuado o plantio das palmeiras imperiais, em detrimento de árvores que possam produzir sombra.
As palmeiras foram incluídas nas paisagens de diversas cidades no Brasil, no final do império, século 19, por decreto. A primeira foi plantada pelo próprio imperador D. João VI, por isso passou a ser denominada de “imperial”. Tornando-se assim um símbolo não somente da monarquia e aristocracia, mas também de poder. Com a instalação da família imperial portuguesa no Rio de Janeiro, foi preciso transformar o Brasil, antes colônia, em um Reino Unido de Algarves. Nesse esforço de transformação, visando uma aproximação com a corte, foram desenvolvidas várias ações, dentre elas, a que nos interessa, são as realizações intervencionistas na paisagem urbana, que ganha um aspecto mais afrancesado, inicialmente na capital, Rio de Janeiro e posteriormente para outras regiões. Para a decoração de avenidas e praças, foi adotado o plantio de palmeiras, usadas em conjunto, alinhadas, criando um ambiente majestoso e requintado, lembrando as colunas de templos e palácios gregos e romanos da Antiguidade (D’ELBOUX, 2004). O uso das palmeiras, conjuntamente com a arquitetura inspirada no neoclassicismo, criava um ambiente que aproximava as cidades do Rio de Janeiro, alçada a capital da corte portuguesa, ao mesmo tempo que distanciava do período colonial. Caiu no gosto da população nas várias cidades no Brasil, chegando até a se tornar símbolos das mesmas, a exemplo de Cuiabá. Esse processo foi engendrado pelas elites formadas em determinado contexto e que assumem alguns valores estéticos que a legitimam de um ponto de vista cultural e a identificam no processo histórico de nossa sociedade.
Em Cuiabá foram plantadas em praças e ao longo da avenida que mais tarde foi chamada de Getúlio Vargas. Com o seu crescimento as palmeiras são adotadas como símbolo maior da cidade. Cuiabá chegou a ser batizada de “cidade verde”; antes do estado ser dividido (mais duas cidades concorriam entre si com seus apelidos: Campo Grande: “cidade morena” e Corumbá “cidade branca”) – até meados dos anos 70, na visão aérea da cidade era perceptível a predominância do verde da vegetação sobre as edificações no perímetro urbano. Isto devido a existência dos pomares existentes nos quintais das casas. Nas ruas, por serem estreitas, não era comum a existência de árvores, sendo a sua presença nos espaços públicos, restrita às praças e mais especificamente na avenida 15 de novembro, quando duplicada, próximo ao porto, com um canteiro central arborizado, assim como na rua 13 de junho ao lado da praça da República. No início do século 20, uma das figuras que ganhou grande destaque no cenário cultural e político, foi o arcebispo D. Aquino Correa, chegando a ser governador do estado e como escritor, pertenceu a Academia Brasileira de Letras. Inicia assim o poema intitulado Cidade Verde:
"Sob os flabelos reais de mil palmeiras,
Tão verdes, sombranceiras
E lindas como alhures não as há,
Sobre alcatifas da mais verde relva,
Em meio a verde silva,
Eis a 'cidade verde': Cuiabá!"

Na contemporaneidade, diante de tanta informação, novas tecnologias e globalização, a subjetividade, tanto individual quanto coletiva, é uma questão que está em destaque. Em uma cidade a produção de ambiente públicos contribui para a produção de identidades, e como dito anteriormente, visando a tornar a mesma um “cartão postal”, um produto no acirrado mundo do turismo.
Um importante ponto de todo esse processo de configuração da cidade, é o “empobrecimento da experiência urbana dos seus habitantes” (JACQUES, 2009). Com o objetivo de criar uma possibilidade de trazer a criticidade à população, na maioria das vezes, marginalizada, e mesmo a parcela que usufrui do espaço, mas tem a sua percepção e seu corpo, manipulados, no sentido de não desenvolver uma consciência crítica, é que a disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II: Atrações Temporárias e Estéticas Emergentes na Cidade do curso de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO – da UFMT, propôs uma intervenção artística. Por meio de uma performance, o grupo de alunos e convidados, ocupou a Orla do Porto, com uma postura de turista. Foi criado um evento nas redes sociais, como um pacote turístico, e dado um nome genérico do mundo turístico globalizado: Cuyaverá: Magic Oest World.

A proposta era que o grupo tivesse uma postura de turistas. Mas um turista que sente falta das sombras, que questiona o fake arquitetônico – as fachadas cenográficas que remetem a uma arquitetura da cidade, cujos originais estão em ruinas, abandonados. E também a homogeneização do espaço, tanto esteticamente, quanto nas instalações, voltadas para o atendimento do turista, semelhantes em todas as cidades turísticas, a exemplo do que acontece com os aeroportos. Esse tipo de espaço é considerado apolítico, consensual (JACQUES, 2009) e a arte é um meio de retomar a vida natural de qualquer núcleo urbano, onde o conflito, o desentendimento, a política, norteia o existir da cidade, enfim, a arte pode fazer com que os habitantes da cidade tomem para si as rédeas de sua própria história.











Percebe-se que nos projetos de intervenção urbana, o elemento urbano não participa, não é um fim, e no nosso entendimento deveria ser. Como disse Paola Berenstein (2009): “A cidade é a possibilidade de o indivíduo ser: quanto mais ela é introjetada no plano familiar, íntimo, pessoal, quanto mais ela parece estruturar o indivíduo no plano familiar, tanto mais ela compõe, de fato, o ser urbano”. Daí a necessidade de intervir nesse processo, de resistir.
Estar na Orla do Porto, ao invés de satisfação, vem o sentimento de não-pertencimento, contrapondo com as lembranças das vivências do passado: alegre, confortável. Hoje, "revitalizado", é um local para apenas "dar uma passada rápida", fotografar e tão somente. Somos turistas na cidade em que vivemos.
 





REFERÊNCIAS


CORRÊA, D. F. de Aquino. Poética: Terra Natal, vol.I –– Tomo II. Edição comemorativa do centenário de nascimento do autor. Brasília, 1985.

D’ELBOUX, Roseli Maria Martins. Manifestações neoclássicas no Vale do Paraíba: Lorena e as palmeiras imperiais. Dissertação (mestrado), São Paulo: FAUUSP, 2004.

JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana D. Corpocidade: Arte enquanto micro-resistência urbana. Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 2, p. 337-350, Maio/Ago. 2009.

Um comentário:

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