sábado, 20 de maio de 2017

Em cartaz, o Espetáculo: Orla do Porto Cuiabá!





Patrícia Wolff


Após algumas horas na orla, é observável que os transeuntes correm freneticamente de sombra em sombra para percorrer o calçadão da orla do Porto Cuiabano. Nesse "fugir do sol” o chão que esfacela em muitas partes passa despercebido, opa! para alguns não, pois tropeçaram naquele pedaço solto de “chão” quebrado. Ao deparar-se com a beleza dos casarões fakes param para os selfies e para a contemplação do “saudoso rio”, mas logo continua seu caminho a procura de sombra que as palmeiras não conseguem proporcionar.

Tais observações passam despercebidas quando ocultadas pelo discurso imagético da Coisa, ou seja, se a aparência for a única realçada nos discursos midiáticos. Dessa forma, o espetáculo é “onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico”. (DEBORD, p. 13).

Os casarões fakes da orla seguem no limiar da “realidade” e deste “comportamento hipnótico”, dissimulando o Lugar histórico dos casarões do centro histórico da cidade e do próprio Bairro Porto, corroborando com o que escreve Guy Debord[i]: “as forças da ausência histórica começam a compor a sua própria e exclusiva paisagem”. (p. 115). E ainda, “tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação”. (p.8).

Representação esta, que é tida como o Real/ a Verdade, posto a “alienação em relação à produção e da abstração generalizada” em todos os âmbitos da vida. Isso faz a sociedade “assistir passivamente” aos espetáculos políticos evolverem a sua cidade, como “espectadores” fiéis. (MAZETTI, p.126)[ii].

A revitalização da Orla Porto Cuiabá se materializa na criação de um novo espaço na urbs, espaço de lazer e de turismo. A reconstrução da orla representa espacialmente a composição de um cenário, onde o conjunto de elementos compõe o lugar de um espetáculo. Sobre a obra do Porto Cuiabá:

A Revitalização inclui a construção de um calçadão com cerca de 1.300 metros na Orla do Rio Cuiabá. O projeto Porto Cuiabá irá proporcionar uma nova área de lazer para os munícipes e turistas, com pista de caminhada, áreas de contemplação do rio, ciclovia, mirante, cinco bares/restaurantes e academias ao ar livre. As obras estão orçadas em R$ 28 milhões[iii]

Para Debord “O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível”. (p.11) Na fala do Governador Pedro Taques onde defende a revitalização da Orla, analisemos como essas características acima aparecem no discurso: “é um direito constitucional e o cidadão cuiabano precisa do que há de melhor” [iv]. Ou seja, pelo fato de ser um “direito constitucional” é positivo e indiscutível e por ser “o que há de melhor” é grandioso. A fala política e propagandista do Governador corroboram com o que escreve Debord: “o espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso”. (p.15).

“Há um tempo para tudo” já dizia o rei Salomão nos tempos antigos da história hebraica, o capitalismo sabiamente apropriou-se desta ideia, naturalizando a divisão do tempo na regulação da vida cotidiana, orientada pelo Mercado. Neste sentido, o Mercado domina o Cronos para “castrar”[v] a sociedade: tempo do trabalho, tempo do ócio/lazer, tempo do turismo/das férias, há um tempo regulado para tudo:

O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência econômica moderna, a sobrevivência aumentada, em que o vivido quotidiano continua privado de decisão e submetido, não à ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado; e, portanto, este tempo reencontra muito naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência das sociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico apoia-se ao mesmo tempo nos traços naturais do tempo cíclico, e dele compõe novas combinações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o repouso semanais, o retomo dos períodos de férias. (DEBORD, p.102)

Ainda, sobre o tempo, tratemos aqui da efemeridade das obras espetaculares. Sobre a Orla do Porto temos a seguinte notícia de 04 de abril de 2017, lembrando que a mesma foi inaugurada em Janeiro de 2017:

Um relatório técnico elaborado pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-MT) relacionou problemas em várias estruturas do complexo turístico Orla do Porto, em Cuiabá, inaugurada há pouco mais de três meses. No relatório, há uma lista de erros cometidos no projeto e na execução da obra: do aterramento a problemas críticos no Teatro de Arena, banheiros mal acabados e instalações elétricas improvisadas. A acessibilidade à orla também é considerada um problema. (grifo nosso)[vi].

Para Debord, “o tempo da sobrevivência moderna, no espetáculo, gaba se tanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se reduz. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo”. (p.105). Dessa forma, a relação entre os discursos (políticos e de especialistas sobre a obra) e o visível (a paisagem revitalizada da Orla do Porto) enunciado pela publicidade é que constituem a espetacularização. Ainda sobre,

Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e no seu corolário — o consumo.[vii] (grifo nosso).

É neste contexto, que a Orla do Porto de Cuiabá aparece como lugar do consumo, isto é, de venda: venda da imagem do novo porto, venda de mercadorias, venda do espaço público para consumação do tempo de lazer e/ou de férias, venda da imagem dos políticos envolvidos na revitalização, ou seja, venda de um espetáculo. Dessa forma, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.” (DEBORD, p.9). 

A imagem dos casarões fakes, dos bares e restaurantes, do calçadão que margeia a Orla, do canteiro de flores e/ou do caminho de palmeiras media o espetáculo, gerando usos da orla que corroboram ainda mais a espetacularização da obra pública. Os diferentes olhares da população sobre a paisagem da Orla “alimentam as histórias ou estórias esquadrinhadas de e com outras histórias várias de cada olhar que as vê. Refaz discursos contidos ou remete a novos discursos, presos que estão a curvas de vida”[viii].

Neste sentido, os usos podem ser ou parecer atravessados de pequenas resistências ou burlas, contudo segundo Debord, podem estar “carregado de pseudovalorizações e aparecer numa sucessão de momentos falsamente individualizados” (p.101) devido ao “tempo pseudocíclico” que está subordinado ao Capital, ou seja, nosso tempo subordinado ás relações mercadológicas capitalistas. 

Para Lazzarato, essa “imposição de condutas e a sujeição dos corpos” (p.64) dentro das sociedades de controle, se impõe com o disciplinamento das relações sociais através de técnicas de aprisionamento como “decompor os gestos, subdividir os tempos, programar os atos” [ix], com o objetivo maior de extração da mais-valia da sociedade. Ou seja, a liberdade de ir e vir, a liberdade de compra, de passear, de tirar férias, perpassa o controle capitalista de consumirmos. Somos livres para consumir e expectar.

[i] DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. eBookLibris. 2003. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf 
[ii] MAZETTI, Henrique Moreira. Entre o afetivo e o ideológico: as intervenções urbanas como políticas pós-modernas. ECO-PÓS- v.9, n.2, agosto-dezembro 2006, pp.123-138. 
[iii] Disponível em: https://www.portosenavios.com.br/noticias/geral/37014-orla-do-porto-cuiaba-sera-inaugurada-hoje 
[iv] Disponível em: http://www.mt.gov.br/-/3893239-cuiaba-tera-novos-espacos-de-lazer-com-orla-do-rio-e-parque-das-aguas 
[v] Alusão à mitologia grega, sendo que o titã Cronos castra seu pai Urano com um golpe de foice, para que a linhagem dos titãs pudesse liderar a partir de então. 
[vi] Disponível em: http://olivre.com.br/geral/orla-do-porto-tem-problemas-criticos-diz-crea/2467 
[vii] DEBORD, p.09. 
[viii] KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Imagem e Narrativa – Ou, existe um discurso da imagem? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n. 12, p. 59-68, dez. 1999. 
[ix] LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006.

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