sexta-feira, 19 de maio de 2017

Orla do Porto: um olhar de Memória.



Intervenção Artística Orla do Porto
 Elina Padilha Fernandes
            A Orla do Porto (hoje assim denominada) sempre foi pra mim, desde a minha infância, a “Avenida Beira Rio”. Nos idos dos anos 80 e 90, foi um ambiente corriqueiro a mim e a minha família, pois, o mercado do Porto era parada obrigatória nos finais de semana para a compra de peixes, carnes e verduras (mercadorias comumente comercializadas no mercado naquela época). Enquanto meus pais seguiam para o interior do mercado e às suas barraquinhas adjacentes, eu os aguardava no carro, e muitas vezes pelo calor e a demora deles, saía do carro e ficava a observar o rio, suas margens, uma prainha do lado oposto, no município de Várzea Grande e os casebres de papelão e maderite dos comerciantes que ali se instalavam.  A margem era repleta desses casebres, famílias inteiras que moravam nesses barracos transformaram a margem do rio Cuiabá em um verdadeiro bairro.
Com um olhar ingênuo e despretensioso diante daquela realidade, todos os meus sentidos eram estimulados, pois, além das imagens observadas, outras características influenciavam essa percepção, o odor era intenso, uma mistura de cheiro de peixe, temperos e esgoto que corria a céu aberto, os sons eram quase ensurdecedores, feirantes em plenos berros para chamar a atenção dos transeuntes, buzinas de carros, cachorros latindo ansiosos por uma lasca de peixe que eram limpos ali diante de todos e um falatório sem fim..., tais lembranças permanecem vivas ainda hoje, pois fizeram parte de uma infância plena desses momentos, que somente quem viveu poderia descrever.
Por isso o meu primeiro olhar para a Orla do Porto sempre será o olhar de uma cuiabaninha que frequentava esse ambiente assim descrito e que o guarda na memória com muito afeto.
  
     

No curso de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - UFMT, na disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas II: Atrações Temporárias e Estéticas Emergentes na Cidade, na qual participo, uma proposta de intervenção artística foi definida entre nós alunos, sob a orientação da Prof.ª Dra. Maria Theresa Azevedo, intitulada de: Intervenção Urbana - Cuyavera Magic Oeste World - Um porto de fantasia e ilusão? Essa interferência artística ocorreria na Orla do Porto, que de acordo com a proposta, nós assumiríamos papéis de turistas visitando o agora então Cartão Postal da cidade de Cuiabá, que mais surge como cenário de visitação pública e de propaganda política.
     

Foi uma experiência que me remeteu àquelas lembranças descritas, pois estava novamente naquele lugar outrora tão diferente e que atualmente apresenta-se perante todos em uma configuração cenográfica, um cenário que sugere de forma muito sintética os antigos casarões cuiabanos, criando uma ilusão com o objetivo de remeter quem por lá passa, para o centro histórico cuiabano, onde os verdadeiros casarões se apresentam em verdadeiras ruínas, deixados à própria sorte pelo poder público.
      

 Tal circunstância me levou ao enfrentamento desse olhar de apreço que até então se conservava em evidência em minha memória, fui obrigada a abandonar tais lembranças, pois, assumindo o papel de pesquisadora que me foi atribuído no decorrer da disciplina, tenho a função de estabelecer uma visão crítica, pois, cabem aqui reflexões, análises e argumentos.
Foi difícil confesso não misturar a questão afetiva com a visão analítica durante a ocasião, partindo dessa questão, concluí que toda intervenção artística é problematizadora, atuações e discussões são abertas e debatidas, pois a mesma incide a partir de um contexto, o que nos leva a ponderar sobre a Arte Contextual, o artista contextual abandona os espaços “sagrados e emblemáticos do poder econômico, como as galerias de arte e museus e logo vão para as ruas e espaços públicos, ou outro lugar que permita escapar dessas estruturas instituídas” (SANCHES; NAVARO, 2002).
A arte contextual opta por estabelecer uma relação direta, sem intermediários entre a obra e a realidade, ela não concede a leitura de primeira vista de um signo ou símbolo, mas de uma realidade vivida, propondo experiências, polemizando, levando a posturas incoerentes, inesperadas, subtraindo do expectador uma dita realidade.
Essa intervenção que realizamos na Orla do Porto, permitiu aperfeiçoar tal conceito, porque tinha como pano de fundo um protesto a essa “maquiagem” que a prefeitura de Cuiabá produziu nesse espaço urbano emblemático da nossa cidade, encarnamos turistas “fakes”, para chamar a atenção de quem passava por lá, e a nossa atuação começou com um convite via redes sociais para esse evento, através dessa mídia recebemos críticas pelo nome do evento, o que para nós foi um ponto positivo, muitos questionaram o porquê de um nome estrangeiro para um evento que ocorreria aqui em Cuiabá, enfim, gerou questionamentos, chamou a atenção de muitos e causou o impacto que desejávamos.
Essa era nossa intenção, a intervenção contou com imagens de árvores frondosas que permitiam o sombreamento do local, que já não estão mais lá e que foram substituídas por altas palmeiras, as quais jamais cumprirão a função de conferir sombra para quem lá visita, imagens de casarões do centro histórico de Cuiabá em ruínas diante da imagem cenográfica, por coincidência a principal emissora de TV do estado estava na Orla durante o andamento da intervenção, em nenhum momento declaramos a nossa atuação, e o mais interessante foi notar que fomos encarados como verdadeiros turistas diante do cenário da Orla do Porto, vários colegas foram entrevistados e assumiram seus papéis de atores, numa atuação onde o contexto definiu a nossa performance.
Acredito que essa intervenção teve grande efeito em mim, sendo a agente da obra de arte, minha percepção enquanto pesquisadora tornou-se mais crítica diante de realidades que até então passavam despercebidas, um véu de afeição e romantismo foi retirado diante dos meus olhos, posso agora compreender melhor o contexto da minha cidade, suas transformações e em que isso implica para todos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

El cuidado y otros lugares comunes en acciones colaborativas y relacionales

Ligeya Daza Hernandez   (El arte es para este mundo, tiene que ocuparse de lo que en el ocurre, sea cual sea su trivialidad. Arden...