quarta-feira, 17 de maio de 2017


Cuyaverá Magic Oeste Word e o projeto de revitalização (ou será gentrificação?) da Orla do Porto de Cuiabá. Comprando gato por lebre!


Uma intervenção urbana na intervenção urbana. Expliquemo-nos.



       A proposta surgiu como atividade programada da disciplina de tópicos especiais em poéticas contemporâneas - Estéticas emergentes nas cidades, do programa de pós-graduação em Estudos de cultura contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, que dentre as discussões e problematizações levantadas no decorrer na disciplina, escolheu a Orla do Porto de Cuiabá e seu projeto de revitalização para estabelecer uma ação e reflexão crítica. Organizados em uma fictícia excursão, em forma de pacote turístico, nos dirigimos a também fictícia Orla do Porto para “contemplar” a beleza natural e a memória histórica do local. Cadê a feira, a praça e o chafariz? Como uma borracha apaga a escrita a lápis, o novo projeto apagou o que um dia foi a saudosa Orla do Porto.
       Lançando um olhar crítico sobre a arquitetura e paisagismo do que eu batizo nesta ocasião como New Port of Cuyaverá, e sobre a experiência vivenciada e sentida no corpo durante este dia, arrisco dizer que a nova orla está longe de ser um simples projeto de revitalização, mas sim faz parte de um grande projeto de gentrificação na cidade de Cuiabá – MT.
       Vale salientar antes de entrarmos na discussão sobre esse processo de gentrificação, que o new port lida diretamente com a memória de um povo, que nasceu, cresceu e viveu a beira do rio Cuiabá, entre embarques e desembarques, festividades e cotidiano. Segundo Pollack (1989), a memória não é passível de enquadramento, emolduração de acordo com interesses pessoais. Ela é livre e atua assim, livremente longe de interferências, remetendo às lembranças de algo que já foi vivido, não apenas como busca de informações do passado, mas sim como uma reconstituição deste, e está intimamente ligada à questões identitárias de um indivíduo ou grupo. E os locais públicos, como a orla do porto servem como lugares de apoio a essa memória, servindo de ponte de interação entre o material e o simbólico. Quando se revitaliza um determinado espaço deve-se tomar cuidado para não tirar dele (o espaço), o poder de rememoração, pois quando um local não é mais reconhecido de acordo com a memória retida, este corre sério risco de desaparecer por completo. Para as gerações futuras, em suas memórias não existirá mais a orla do porto como conhecemos, e sim outra orla.
       Entrando na discussão sobre o projeto arquitetônico e paisagístico, vemos claramente esse apagamento da memória apoiado no fato de que tanto elementos arquitetônicos quanto ambientais foram implantados no espaço, de forma totalmente artificial, como exemplo temos a tentativa de reprodução dos antigos casarões e a substituição da flora nativa, como as majestosas mangueiras por palmeiras imperiais. Todo isso é explicado quando partimos do pressuposto de que a orla do porto é vista como um negócio. O projeto não teve o intuito de revitalizar, trazer melhorias e preservação ao que já existia, e muito menos destacar as potencialidades paisagísticas, mas sim alterar significativamente o local apoiado na satisfação de interesses imobiliários e mercantis planejados para a região (GROSSO, 2008). 
     Esses processos de revitalização urbana são na visão de Arantes, Maricato e Vainer (2000), em sua maioria uma tentativa de produção cultural das cidades visando o lucro, associadas ao status do patrimônio como uma verdadeira isca ou imagem publicitária, pois a cultura vem se tornando um grande negócio nas cidades. Essas intervenções em centros urbanos não se dão com o intuito de conservação e melhoria da estrutura existente, mas sim como uma tentativa de “restaurar” a identidade dos espaços e das pessoas com que se relaciona. Portanto, esse processo de requalificação se caracteriza não só por critérios funcionais e ambientais, mas principalmente políticos e sociais. Essa tentativa de se dar um “novo valor” a orla, acabou por fomentar ainda mais a segregação entre a população, onde comerciantes tradicionais do local tiveram a necessidade de mudar o nome de seu negócio de bar do fulano, para lanchonete por exemplo. É um exemplo claro de elitização. 
     Por isso, neste momento chamo a atenção para o que considero como um processo de gentrificação da orla, que tem por essência a produção de paisagens urbanas onde as classes médias e altas possam consumir, sendo caracterizado exatamente como relata Smith in Bidou-Zachariasen, 2006, como um processo característico da terceira fase de gentrificação, que se desloca das áreas centrais e se estende a construções antigas que encontram-se ainda intactas em distritos mais afastados. (Smith in Bidou-Zachariasen, 2006, p. 79). Apesar de nos parecer absurdo, o processo de gentrificação é uma tendência mundial, tendo como ferramenta principal, a indústria da comunicação, com destaque a propaganda que tira a cidade de uma posição de local de produção, passando-a a categoria de mercadoria, pois através do mercado imobiliário juntamente com o poder público, passam a aplicar no local, ações de marketing e estratégias de planejamento dando a ela um caráter nobre, emburguesado, onde antes era considerado como pobre ou periférico. Porém, essas ações acabam afastando a população local e moradores da região, que devido ao baixo poder aquisitivo não tem mais condições de frequentar o local. Não posso afirmar com veemência, no caso da orla porto se ouve essa supervalorização do preço de imóveis ao redor da orla e dos produtos ali comercializados, pois não fiz um estudo específico para tal, mas é bem provável que tenha seguido essa tendência, assim como se vê em outras regiões já estudadas como por exemplo o projeto de urbanização da Lagoa da jansen em São Luís do Maranhão (Bezerra, Chaves, 2014). E se acaso ainda não aconteceu, é apenas uma questão de tempo.
       Portanto, muita atenção aos discursos de revitalização, renovação, otimização de espaços. O que pode estar por traz disso é sim o mascaramento do desinvestimento significativo do poder público a determinadas áreas, para mais tarde, através de uma “cara nova”, uma “nova roupagem” propiciar uma valoração da área em geral, e solidificar a manutenção do poder de uma classe sobre a outra. Quem ganhou com o novo projeto da Orla? A população local? Ou foi meticulosamente preparada para satisfazer as necessidades do fomento ao turismo e as classes mais abastadas, com o intuito único e objetivo de gerar LUCRO ao Estado? Ah, e as nossas mangueiras...




New Port of Cuyaverá


À sombra de uma mangueira,
Escrevia seus versos.
No papel, registrava
O que não podia ser visto.
E o rio se encarregava
De desviar os dejetos.
Projeto simplista, nada complexo.
E o sol? Ardeu no coração...
Com a realidade escondida por detrás do paredão.
E a memória perdida
Entre ruínas recém construídas,
De isopor e papelão.


Jéssica Vettorelo, 08/04/2017.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARANTES, Otília Beatriz Fiori; MARICATO, Ermínia;VAINER, Carlos B. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.


BEZERRA, Aline Maria Marques. CHAVES, César Roberto Castro. Revitalização Urbana: Entendendo o processo de requalificação da paisagem. In REVISTA DO CEDS. Periódico do Centro de Estudos em Desenvolvimento Sustentável da UNDB N. 1 agosto/dezembro 2014. Disponível em: http://www.undb.edu.br/ceds/revistadoceds. Acesso em: 12/05/2017.


GROSSO, Kerley Soares de Souza. Intervenções urbanísticas como estratégia para o desenvolvimento local e revalorização da imagem da cidade: análise da revitalização no município de Niterói (RJ). 1° SIMPGEO/SP, Rio Claro, 2008.


POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In Revista Estudos Históricos. Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) da Escola de Ciências Sociais (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). v. 5, n. 10. 1992. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080. Acesso em: 12/05/2017.


SMITH, Neil. A gentrificação generalizada: de uma anomalia local à “regeneração” urbana como estratégia urbana global. In: Bidou-Zachariasen, C. (ed.), De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006.

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