terça-feira, 16 de maio de 2017

(Re) inventando a orla do Porto: quem a imaginou?


Sidnei Moura Duarte
sidneiduartefis@hotmail.com
Artes Híbridas, Intersecções, Contaminações e Transversalidades: Atrações Temporárias e Estéticas Emergentes na Cidade – Profa. Dra. Maria Thereza de Oliveira Azevedo

Enfim, está pronta a tão esperada revitalização da orla do Porto de Cuiabá, um projeto que visa revitalizar as margens localizada entre o rio Cuiabá e o histórico bairro do Porto. A obra foi entregue, antes mesmo de finalizada, no dia 13 de dezembro do ano de 2016 pelo então prefeito Mauro Mendes. A construção custou aos cofres públicos cerca de 16 milhões de reais e previa inicialmente áreas de lazer, calçadão com cerca de 1300 metros, ciclovia, pista de caminhada, um mirante, academias ao ar livre e cinco restaurantes. 

Poucos meses depois da entrega da área de convivência o Ministério Público Estadual, depois de denúncias, foi aberto um inquérito civil para apurar eventuais riscos à integridade física dos frequentadores do espaço. Segundo relatório técnico CREA-MT nº 04/2017, foram encontradas “inúmeras patologias”, onde a maioria é de fácil correção, porém há patologias de ordem estrutural e não conformidades que oferecem riscos aos seus usuários.

Foram identificadas também deformações nos restaurantes, banheiros e quiosques construídos sobre o gabião, além de tampas de concreto de poços mal localizadas, instalações elétricas improvisadas e sem devida isolação, obras de drenagem malfeitas e falta de sinalização em alguns pontos” (Midianews, 2017).

Um dos intuitos desse novo ponto turístico é reproduzir em menor escala réplicas de casarões antigos localizados originalmente no centro histórico, que segundo os representantes políticos, é uma forma de preservar e mostrar aos visitantes os costumes e a tradição da cuiabania. Ao visitar o centro histórico podemos encontrar esses mesmos casarões em estado de conservação deploráveis, alguns deles com fachadas apoiadas por andaimes de madeira.

Surgem assim algumas perguntas: O que querem preservar? O que eles consideram tradição? Qual o intuito de montar uma maquete destes casarões na Orla do Porto, sendo que parece não haver uma agenda de reformas destes prédios, que segundo eles, são patrimônios de Cuiabá?

Para buscarmos algumas possíveis respostas, usaremos uma das dimensões da noção de cultura, que é a produção coletiva de significados, que segundo Canclini (2008), a cidade ultrapassa o sentido de espaço físico povoado por um grupo extenso de sujeitos, e vai além de uma realidade material. A cidade é constituída também, por um espaço simbólico construído a partir das ações do homem sobre a natureza e da relação do homem com o “Outro”, num processo de ressignificações e invenções.

Guattari (2005), no livro “Cartografia dos desejos”, nos mostra que a palavra “cultura” ao decorrer da história teve vários sentidos, e nos apresenta três níveis desta noção que funcionam simultaneamente. O primeiro núcleo semântico, e o mais antigo delas, ele designou a “cultura-valor”, que determina quem tem cultura e quem não tem, separando o culto do inculto.

O segundo núcleo semântico, designa a “cultura-alma coletiva”, nessa noção, a mais democrática, todos tem cultura, uma espécie de a priori da cultura, qualquer um pode reivindicar sua identidade cultural. O terceiro núcleo semântico, na qual vou trabalhar aqui, corresponde à cultura de massa, Guattari denomina “cultura-mercadoria”, a cultura são todos os bens materiais e simbólicos.

Aí já não há julgamentos de valores, nem territórios coletivos da cultura mais ou menos secretos... A cultura são todos os bens: todos os equipamentos (como as casas de cultura), todas as pessoas (especialistas que trabalham nesse tipo de equipamento), todas as referências teóricas e ideológicas relativas a esse funcionamento, tudo que contribui para a produção de objetos semióticos (tais como livros e filmes), difundidos num mercado determinado de circulação monetária e estatal. (GUATTARI, 2005, pg. 23)

 Na categoria cultura-mercadoria, por ser mais objetiva, a cultura é tratada no que produz, se reproduz, e se modifica constantemente. Nessa noção há uma produção da subjetividade capitalística, com base na quantidade, essencial na confecção da força coletiva de controle social.

A questão a ser trabalhada nesse caso não são “quais vão ser os recipientes dessa produção cultural” ou “quem produz cultura”, mas sim, apontar a existência de outros modos de produção semiótica articuladas entre si que não segregue e nem rotule indivíduos. Não cair na armadilha que estão trabalhando preservar a tradição.

Os meios de comunicação e órgãos públicos quando tratam de questões de preservação da tradição e da identidade cultural, como a orlas do Porto, tentam nos convencer que estão trabalhando para construção de algo melhor para a cidade e para o povo, quando na verdade estão homogeneizando, massificando a população.



Figura 01 - Maquete dos casarões (Foto: Ana Lia Rodrigues)


Figura 02 - O mascote Jacaré do Pantanal (Foto: Ana Lia Rodrigues)


A intervenção “Cuyaverá Magic World” proposto pelos alunos desta disciplina, ocorreu na manhã do dia 08 de abril, aniversário da cidade. Entre os preparativos para o espetáculo que ocorria a noite, organizamos uma pseudo-tour uniformizados pela orla, como fossemos turistas vislumbrando o mundo de ilusões criado pelos nossos representantes políticos. Fazendo do espetáculo um outro espetáculo de forma irônica, provocando uma ruptura com nossa presença, com nossos corpos, no tecido semântico do local. A orla foi feita para cumprir um papel, satisfazer um objetivo, fora feita para ser consumida sem questionamentos pela população, enfim; como um produto pronto para ser usado.

A redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão. A cidade não só deixa de ser cenário, mas, mais do que isso, ela ganha corpo a partir do momento em que ela é praticada, se torna “outro” corpo. Dessa relação entre o corpo do cidadão e esse “outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea. (JACQUES, 2008)

A performance serviu para mostrarmos que neste marketing urbano, o que já havia nos apontado Félix Guattari (2005): que na realidade só existe uma cultura: a capitalística, que é etnocêntrica, intelectocêntrica e logocêntrica. Em nossa intervenção estética, chamamos a atenção para a existência de outro processo de busca de singularização, forjado nas práticas, nos usos de táticas para alterar os códigos impostos e reapropriar o espaço ao nosso contexto.

Essa intervenção nos provocou vários questionamentos em sala de aula sobre o que é tradição e costumes. Hobsbawm e Ranger (2008) nos mostra em seu livro “A invenção das tradições”, que certos hábitos praticados pelos povos, que nos parece de longa data, pode ter sido inventado e institucionalizada a pouco tempo.

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM; RANGER, 2008, pg. 09)

Devemos nos atentar na diferença entre as noções de “tradição e “costumes” trazido por Eric Hobsbawm e Terence Ranger. As “tradições”, inclusive as inventadas, têm como característica uma continuidade bastante artificial, são como fortes reações as novas situações, numa tentativa de manter as coisas como se fossem imutáveis ao passar dos anos, uma tentativa de fixar práticas e torná-las invariáveis.

O “costume” tem sentido nitidamente diferenciado da “tradição”, sua função é dar continuidade histórica a qualquer mudança, visa ampliar e não tolher as novas práticas. O “costume” não é invariável, porque a vida não pode ser assim, nem mesmo nas sociedades tradicionais.

“Costume” é o que que fazem os juízes; “tradição” (no caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros acessórios e rituais formais que cercam a substância, que é a ação do magistrado. A decadência do “costume” inevitavelmente modifica a “tradição” à qual ele geralmente está associado. (HOBSBAWM; RANGER, 2008, pg. 10)

Podemos classificar as tradições inventadas em três categorias superpostas: a) aquelas que pretendem estabelecer uma coesão social; b) que procuram legitimar instituições, status e relações de autoridade; e c) tentam estabelecer inculcar ideias, estabelecer padrões de comportamento e sistemas de valores.

A nova orla do Porto, ao que parece, tem um potencial aparente de ser uma benfeitoria, mas que pode ser prejudicial a cidade, ao meio ambiente e a população, se deixarmos as decisões e a administração nas mãos unicamente do poder público.  A orla vai ser como quisermos que ela seja, se intervimos e participarmos na sua construção, tanto material quanto simbólico.

Não nos devemos deixar enganar por um paradoxo curioso, embora compreensível: as nações modernas, com toda sua parafernália, geralmente afirma ser o oposto do novo, ou seja, estar enraizadas na mais remota antiguidade, e o oposto do construído, ou seja, ser comunidades humanas, “naturais” o bastante para não necessitarem de definições que não a defesa dos próprios interesses. (HOBSBAWM; RANGER, 2008, pg. 22)

Este texto não tem como objetivo esgotar o assunto, mas sim pontuar algumas questões pertinentes ao assunto referido. As intervenções urbanas enquanto manifestações que levantem questões políticas, como por exemplo - novas práticas, novas subjetividades e a crise de representação – são pertinentes ao criarem outras formas de vivenciar os espaços públicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CANCLINI, Nestór Garcia. Imaginários culturais da cidade: conhecimento/ espetáculo/ desconhecimento. In: COELHO, T. (Org.). A cultura pela cidade. São Paulo: Iluminuras, 2008.
GUATTARI, Félix. Micropolítica: cartografias do desejo/Félix Guattari, Suely Rolnik. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (Org). A invenção das tradições. São Paulo: Editora paz e terra, 2008.
JACQUES, Paola Berestein. Corpografias urbanas. IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura: Salvador/BA,  28 a 30 de maio de 2008.
Midianews, Cotidiano/Orla do Porto. Disponível em: < http://www.midianews.com.br /cotidiano /mpe-investiga-risco-a-usuario-prefeitura-tera-que-dar-solucao/293362 >. Acesso em 15 de maio de 2017.

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