Sidnei Moura Duarte
sidneiduartefis@hotmail.com
Artes Híbridas, Intersecções, Contaminações
e Transversalidades: Atrações Temporárias e Estéticas Emergentes na Cidade – Profa.
Dra. Maria Thereza de Oliveira Azevedo
Enfim, está pronta a tão esperada
revitalização da orla do Porto de Cuiabá, um projeto que visa revitalizar as
margens localizada entre o rio Cuiabá e o histórico bairro do Porto. A obra foi
entregue, antes mesmo de finalizada, no dia 13 de dezembro do ano de 2016 pelo
então prefeito Mauro Mendes. A construção custou aos cofres públicos cerca de 16
milhões de reais e previa inicialmente áreas de lazer, calçadão com cerca de
1300 metros, ciclovia, pista de caminhada, um mirante, academias ao ar livre e cinco
restaurantes.
Poucos meses depois da entrega da
área de convivência o Ministério Público Estadual, depois de denúncias, foi
aberto um inquérito civil para apurar eventuais riscos à integridade física dos
frequentadores do espaço. Segundo relatório técnico CREA-MT nº 04/2017, foram
encontradas “inúmeras patologias”, onde a maioria é de fácil correção, porém há
patologias de ordem estrutural e não conformidades que oferecem riscos aos seus
usuários.
Foram identificadas também deformações
nos restaurantes, banheiros e quiosques construídos sobre o gabião, além de
tampas de concreto de poços mal localizadas, instalações elétricas improvisadas
e sem devida isolação, obras de drenagem malfeitas e falta de sinalização em
alguns pontos” (Midianews, 2017).
Um dos intuitos desse novo ponto
turístico é reproduzir em menor escala réplicas de casarões antigos localizados
originalmente no centro histórico, que segundo os representantes políticos, é
uma forma de preservar e mostrar aos visitantes os costumes e a tradição da
cuiabania. Ao visitar o centro histórico podemos encontrar esses mesmos
casarões em estado de conservação deploráveis, alguns deles com fachadas
apoiadas por andaimes de madeira.
Surgem assim algumas perguntas: O que
querem preservar? O que eles consideram tradição? Qual o intuito de montar uma
maquete destes casarões na Orla do Porto, sendo que parece não haver uma agenda
de reformas destes prédios, que segundo eles, são patrimônios de Cuiabá?
Para buscarmos algumas possíveis
respostas, usaremos uma das dimensões da noção de cultura, que é a produção
coletiva de significados, que segundo Canclini (2008), a cidade
ultrapassa o sentido de espaço físico povoado por um grupo extenso de sujeitos,
e vai além de uma realidade material. A cidade é constituída também, por um
espaço simbólico construído a partir das ações do homem sobre a natureza e da
relação do homem com o “Outro”, num processo de ressignificações e invenções.
Guattari (2005), no livro
“Cartografia dos desejos”, nos mostra que a palavra “cultura” ao decorrer da
história teve vários sentidos, e nos apresenta três níveis desta noção que
funcionam simultaneamente. O primeiro núcleo semântico, e o mais antigo delas,
ele designou a “cultura-valor”, que determina quem tem cultura e quem não tem,
separando o culto do inculto.
O segundo núcleo semântico, designa a
“cultura-alma coletiva”, nessa noção, a mais democrática, todos tem cultura,
uma espécie de a priori da cultura, qualquer
um pode reivindicar sua identidade cultural. O terceiro núcleo semântico, na
qual vou trabalhar aqui, corresponde à cultura de massa, Guattari denomina
“cultura-mercadoria”, a cultura são todos os bens materiais e simbólicos.
Aí já não há julgamentos de valores, nem
territórios coletivos da cultura mais ou menos secretos... A cultura são todos
os bens: todos os equipamentos (como as casas de cultura), todas as pessoas (especialistas
que trabalham nesse tipo de equipamento), todas as referências teóricas e
ideológicas relativas a esse funcionamento, tudo que contribui para a produção
de objetos semióticos (tais como livros e filmes), difundidos num mercado
determinado de circulação monetária e estatal. (GUATTARI, 2005, pg. 23)
Na categoria cultura-mercadoria, por ser mais
objetiva, a cultura é tratada no que produz, se reproduz, e se modifica
constantemente. Nessa noção há uma produção da subjetividade capitalística, com
base na quantidade, essencial na confecção da força coletiva de controle
social.
A questão a ser trabalhada nesse caso
não são “quais vão ser os recipientes dessa produção cultural” ou “quem produz
cultura”, mas sim, apontar a existência de outros modos de produção semiótica
articuladas entre si que não segregue e nem rotule indivíduos. Não cair na
armadilha que estão trabalhando preservar a tradição.
Os meios de comunicação e órgãos
públicos quando tratam de questões de preservação da tradição e da identidade
cultural, como a orlas do Porto, tentam nos convencer que estão trabalhando
para construção de algo melhor para a cidade e para o povo, quando na verdade
estão homogeneizando, massificando a população.
Figura 01 - Maquete dos casarões (Foto: Ana Lia Rodrigues)
Figura 02 - O mascote Jacaré do Pantanal (Foto: Ana Lia Rodrigues)
A intervenção “Cuyaverá Magic World” proposto pelos alunos desta disciplina, ocorreu na manhã do dia 08 de abril, aniversário da cidade. Entre os preparativos para o espetáculo que ocorria a noite, organizamos uma pseudo-tour uniformizados pela orla, como fossemos turistas vislumbrando o mundo de ilusões criado pelos nossos representantes políticos. Fazendo do espetáculo um outro espetáculo de forma irônica, provocando uma ruptura com nossa presença, com nossos corpos, no tecido semântico do local. A orla foi feita para cumprir um papel, satisfazer um objetivo, fora feita para ser consumida sem questionamentos pela população, enfim; como um produto pronto para ser usado.
A redução da ação urbana, ou seja, o
empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perda da
corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços
desencarnados. Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais
privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre
urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão. A cidade não só
deixa de ser cenário, mas, mais do que isso, ela ganha corpo a partir do
momento em que ela é praticada, se torna “outro” corpo. Dessa relação entre o
corpo do cidadão e esse “outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de
apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade
contemporânea. (JACQUES, 2008)
A performance serviu para mostrarmos
que neste marketing urbano, o que já havia nos apontado Félix Guattari (2005):
que na realidade só existe uma cultura: a capitalística, que é etnocêntrica,
intelectocêntrica e logocêntrica. Em nossa intervenção estética, chamamos a
atenção para a existência de outro processo de busca de singularização, forjado
nas práticas, nos usos de táticas para alterar os códigos impostos e
reapropriar o espaço ao nosso contexto.
Essa intervenção nos provocou vários
questionamentos em sala de aula sobre o que é tradição e costumes. Hobsbawm e
Ranger (2008) nos mostra em seu livro “A invenção das tradições”, que certos
hábitos praticados pelos povos, que nos parece de longa data, pode ter sido inventado
e institucionalizada a pouco tempo.
Por “tradição inventada” entende-se um
conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que
possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico
apropriado. (HOBSBAWM; RANGER, 2008, pg. 09)
Devemos nos atentar na diferença
entre as noções de “tradição e “costumes” trazido por Eric Hobsbawm e Terence
Ranger. As “tradições”, inclusive as inventadas, têm como característica uma
continuidade bastante artificial, são como fortes reações as novas situações,
numa tentativa de manter as coisas como se fossem imutáveis ao passar dos anos,
uma tentativa de fixar práticas e torná-las invariáveis.
O “costume” tem sentido nitidamente
diferenciado da “tradição”, sua função é dar continuidade histórica a qualquer
mudança, visa ampliar e não tolher as novas práticas. O “costume” não é
invariável, porque a vida não pode ser assim, nem mesmo nas sociedades
tradicionais.
“Costume” é o que que fazem os juízes;
“tradição” (no caso, tradição inventada) é a peruca, a toga e outros acessórios
e rituais formais que cercam a substância, que é a ação do magistrado. A
decadência do “costume” inevitavelmente modifica a “tradição” à qual ele
geralmente está associado. (HOBSBAWM; RANGER, 2008, pg. 10)
Podemos classificar as tradições
inventadas em três categorias superpostas: a) aquelas que pretendem estabelecer
uma coesão social; b) que procuram legitimar instituições, status e relações de autoridade; e c) tentam estabelecer inculcar
ideias, estabelecer padrões de comportamento e sistemas de valores.
A nova orla do Porto, ao que parece,
tem um potencial aparente de ser uma benfeitoria, mas que pode ser prejudicial a
cidade, ao meio ambiente e a população, se deixarmos as decisões e a
administração nas mãos unicamente do poder público. A orla vai ser como quisermos que ela seja,
se intervimos e participarmos na sua construção, tanto material quanto
simbólico.
Não nos devemos deixar enganar por um
paradoxo curioso, embora compreensível: as nações modernas, com toda sua
parafernália, geralmente afirma ser o oposto do novo, ou seja, estar enraizadas
na mais remota antiguidade, e o oposto do construído, ou seja, ser comunidades
humanas, “naturais” o bastante para não necessitarem de definições que não a
defesa dos próprios interesses. (HOBSBAWM; RANGER, 2008, pg. 22)
Este texto não tem como objetivo
esgotar o assunto, mas sim pontuar algumas questões pertinentes ao assunto
referido. As intervenções urbanas enquanto manifestações que levantem questões
políticas, como por exemplo - novas práticas, novas subjetividades e a crise de
representação – são pertinentes ao criarem outras formas de vivenciar os
espaços públicos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANCLINI,
Nestór Garcia. Imaginários culturais da cidade: conhecimento/ espetáculo/
desconhecimento. In: COELHO, T. (Org.). A cultura pela cidade. São Paulo:
Iluminuras, 2008.
GUATTARI, Félix. Micropolítica:
cartografias do desejo/Félix Guattari, Suely Rolnik. Petrópolis, RJ: Vozes,
2005.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence
(Org). A invenção das tradições. São Paulo: Editora paz e terra, 2008.
JACQUES, Paola Berestein.
Corpografias urbanas. IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em
Cultura: Salvador/BA, 28 a 30 de maio de
2008.
Midianews, Cotidiano/Orla do Porto.
Disponível em: < http://www.midianews.com.br
/cotidiano /mpe-investiga-risco-a-usuario-prefeitura-tera-que-dar-solucao/293362
>. Acesso em 15 de maio de 2017.
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