Bruna Mendes de Fava
Os atuais projetos urbanos
contemporâneos, ditos de revitalização urbana, estão sendo realizados no mundo
inteiro de acordo com uma mesma estratégia: genérica, homogeneizadora e
consensual [...] transformam os espaços públicos em cenários, espaços
desencarnados, sem corpo, pura imagem. As cidades cenográficas contemporâneas
estão cada dia mais padronizadas e uniformizadas. Espaços destituídos de seus
conflitos inerentes, dos desacordos e dos desentendimentos, ou seja, são
espaços apolíticos (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 341).
O roteiro turístico Cuyaverá Magic Oest World na orla do
Porto objetivou através da ironia levantar questões relacionadas ao trecho a
cima, que geralmente não são analisadas em nosso contexto cotidiano como a
artificialidade dos espaços públicos da cidade, que estão cada vez mais
homogeneizados e excludentes, maquiados pelos governantes que tentam esconder
as irregularidades, entroncamentos, e deficiências das áreas de convivência. O
espaço público é “zona de conflito", já que pertence a cidadãos que apresentam
posicionamentos, gostos, valores e classes sociais distintas, mas que deveriam
conviver e ter o direito de usufruir de áreas urbanas comuns.
O bairro do Porto é um dos mais antigos da cidade de Cuiabá
e possui patrimônios culturais materiais e imateriais relevantes para a cidade,
como os casarões antigos que abrigavam a elite cuiabana século XVIII ( REVISTA
FATO E NOTÍCIA, 2016), os aspectos culturais da cuiabania, o linguajar do povo
antigo que mora na região, seus modos de fazer e costumes, além de ter sido a
orla do rio local de grandes trocas comerciais realizadas, onde embarcações atracavam e
subsidiavam a cidade com mercadorias e mantimentos.
Foto 1:
Placa turística “Novo Porto”.
Embora a orla tenha passado por um processo de “revitalização”,
o que se percebe é justamente a não vida, já que não foi considerada a aproximação
da população local e da vivência de seus regionalismos, não foram realizadas
mudanças efetivas em nossos casarões e o Rio Cuiabá ainda continua impróprio
para utilização.
A experiência performática na orla do Porto teve o intuito
de criticar a transformação do local, pautada na construção de um panorama
artificial que maquia a responsabilidade do poder público no processo de gestão
e manutenção da cidade e enfraquece os regionalismos e as tradições, além de
descaracterizar e tornar superficial e previsível a vivência em um espaço
público, negligenciando o que é importante e essencial.
O cenário da orla foi inventado através dos protótipos de
casarões antigos e árvores atípicas de fácil implantação, que escondem e tiram
o foco de questões consistentes e importantes para a cidade, como a efetiva
restauração dos casarões antigos, muitos em estado deplorável e a diminuição
das áreas verdes e vegetação típica do entorno do município.
A não vida se deve ao uso da espetacularização urbana como
estratégia de padronização e privatização dos espaços públicos que “acaba
resumida à utilização e circulação disciplinadas por princípios segregatórios,
conservadores e despolitizadores que conferem um sentido mercadológico,
turístico e consumista ao seu modo de operação” (BRITTO, JACQUES, 2009, p.
338). O enfoque turístico foi o que balizou a nossa crítica, e nos fez pensar
em um roteiro que ironizasse o fazer turismo e colocasse em evidência a
encenação e a maquiagem da realidade. Mas por que o turismo pode nos remeter ao
processo de espetacularização urbana?
Por
mais que o ser humano viaje desde tempos pretéritos por motivações diversas,
como sobrevivência, conquista de territórios, religião, saúde, comércio,
esporte e posteriormente lazer, o turismo enquanto atividade econômica é um
fenômeno contemporâneo. Portanto suas dinâmicas e processos são constantemente
atravessados pelos padrões e homogeneidades
inerentes ao contexto capitalista e globalizado que estamos imersos.
Moraes
e Gândra (2016) abordam o turismo contemporâneo diretamente relacionado a
contextos espetaculares que, de acordo com a dinâmica de cada destino, apresentam
proporções que vão desde o micro ao
megaespectáculo, e que envolvem a “dramatização/teatralização,
diversão e ruptura das regularidades, [...] do monológico ao interativo, do presencial/corpóreo
ao midiatizado. [...] Os lugares
preparam-se para captar e direcionar o olhar do turista, bem como este busca
determinados aspectos locais já consagrados”. (MORAES, GÂNDRA, 2016, p.
1-14).
Mas
por que existe esta necessidade de representação e ruptura das regularidades se
uma das principais motivações dos turistas é justamente conhecer novas
realidades diferentes do seu entorno habitual? Alguns autores abordam essa
questão por perspectivas semelhantes.
Jaques (2004) salienta que a concorrência
entre as destinações turísticas e os investimentos estrangeiros fazem com que
os gestores destes lugares gerem estratégias de consolidação e destaque no
mercado, o que faz com que a iniciativa privada e poder público de cidades
turísticas procurem consolidar e vender uma marca da destinação, e portanto se
empenham para minimizar as irregularidades através da criação de destinos
cenográficos cada vez mais homogêneos e uniformes.
Wolton
(1997) também coloca que os responsáveis pelo desenvolvimento turístico querem
mostrar um cenário sem imperfeições para os turistas e portanto escondem as
questões e conflitos sociais, o que também é ressaltado por Rojek (1995, p.
62): “A ideia é remover “os elementos caóticos” da realidade”.
Carvalho
enfatiza que o objetivo da destinação é cativar o turista, e nesse contexto
apesar de perdas das paisagens naturais e na cultura original o objetivo é
vender paraísos turísticos:
Os “paraísos turísticos” difundidos
pela mídia como fantasias realizáveis são consumidos em modelos padronizados de
estrutura com perdas na paisagem e na cultura originais, transformados em
cenários artificiais onde se desenrolam espetáculos devidamente ensaiados para
cativar o turista (CARVALHO, 2007, p. 294).
Portanto
fazer turismo se tornou em muitos contextos participar de uma representação em
um cenário fake (falso, fictício) especialmente criado para satisfazer
necessidades dos turistas. Connell (2005,
p. 764), ressalta que às experiências do pós-turismo privilegiam o “simulacro”,
ou seja, “[...] deram origem à emergência do conceito de hiperrealidade no
turismo, em que o limite entre a realidade e fantasia são indistinguíveis".
Nesse
perspectiva o termo turistificação (assim como outros termos colocados por
Jaches (2004) museificação, musealisação, estetização,
gentrificação, culturalização, patrimonialização) é utilizado em situações de
espetáculo que não necessariamente ocorrem durante viagens mais que priorizam
“a lógica do consumo” (BRITTO, JACQUES, 2009) e que de algum modo transformam a
realidade da cidade.
A
performance no Porto ocorreu no dia do aniversário de Cuiabá (8 de abril de
2017), a cidade além de completar mais um
ano comemorou nessa data 298 anos de existência. A ironia da data, e a
experiência como um todo colocou em evidência a crítica ao fazer turismo em um
cenário espetacularizado. Com a finalidade de questionarmos nossa própria
cidade, nos fantasiamos de turistas caricatos, com filtros solares, óculos escuros, chapéus de
proteção ao sol intenso, água e camiseta que uniformizava o grupo, e remetia a
padronização do espaço urbano que contemplávamos. As sombrinhas também
compuseram o cenário turístico, com objetivo de evidenciar a ausência de sombra
nos espaços públicos, o que dificulta a convivência nos supostos locais de
socialização.
Foto 2: Turistas do pacote Cuyaverá Magic
Oeste World.
Criamos um painel para fotos, que geralmente
encontramos em destinações turísticas, o qual colocamos o rosto e “fazemos de
conta”, que compomos o cenário da foto.
Esse cenário geralmente está contido de imagens de elementos consagrados
da região, no nosso caso elementos “típicos” do Mato Grosso e do Pantanal: os
casarões antigos, as araras, o tuiuiú e o jacaré.
Foto 3:
Turistas contribuindo para o marketing.
Foto 4:
Fila dos turistas para fotos no painel regional.
As
questões que surgem nesse contexto são: se estou em uma localidade que
apresenta regionalismos e elementos que a identificam e que expressam suas
particularidades, por que é necessário criar um espaço fictício que compõe
esses elementos, já que subentende-se
que eles estão a nossa volta no espaço de visitação? Por que ao invés de criar
casarões, fauna e flora fictícia em um painel de fotos, não são criadas ações
efetivas para a saúde e bem estar das espécies regionais como a despoluição do
rio, reflorestamento e restauração efetiva dos vários casarões de Cuiabá? Por
que não existiu a preocupação com esses “atrativos turísticos” na revitalização
da orla do Porto? As localidades são heterogêneas, e apresentam contradições
que merecem ser mostradas e não sucumbidas do processo. Talvez seja mais fácil,
e conveniente para os gestores públicos criarem
um espaço artificial padronizado do que lidar com as complexidades, particularidades,
investimentos e mudanças mais consistentes em cada região.
Além
disso, quando turistas e cidadãos locais colocam o rosto e gravam a imagem no painel
inventado, registram o consentimento à proposta e implicitamente concordam com o
cenário construído, e não percebem que são usados como ferramenta para mais
turistas se inspirarem e comprarem pacotes, ou seja, tornam-se mais um objeto
de marketing e vítimas do consumo. “A “turistificação” das cidades é fortemente
ancorada à lógica de consumo típica dos contextos espetacularizados,
generalizou-se como um padrão interativo entre pessoas e lugares, que opera,
inclusive, em circunstâncias sem qualquer apelo turístico” . (BRITTO, JACQUES,
2009, p. 345).
Outra crítica da performance inclui especificamente a
questão pública de restauração dos casarões antigos. Através de imagens de
casarões em condições precárias tiramos fotos em frente aos protótipos de
casarões arquitetados na orla. Em algumas delas tampávamos nosso rosto expondo
os contrastes da imagem real e contexto artificial criado.
Os
modelos dos casarões implantados exprimem a artificialidade e as contradições
das ações do poder público. Embora tenhamos enraizados vestígios
histórico-culturais que carregam nossas tradições nas paredes de dezenas de
casarões no Porto e em outros pontos da cidade, não existiu investimentos na
reforma, manutenção e salvaguarda desses patrimônios que correm o risco de
perderem os vestígios originais e até desmoronarem pelo descaso dos governantes
e responsáveis.
Os
investimentos em arranjos cenográficos e a negligência de questões profundas
dos verdadeiros casarões repercutem em uma vivência rasa da cultura local, o que Britto e Jacques (2009) chamam de
empobrecimento da experiência urbana, que é a forma como as cidades
contemporâneas e seus habitantes se configuram, enfraquecendo seu “espaço de
participação civil e de produção criativa e de vivência”, o que pode ser visto
claramente nos cenários inventados no Porto, nas fachadas dos casarões e também
nas árvores implantadas. “O
empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a um empobrecimento
da corporalidade, os espaços urbanos tornam-se simples cenários, sem corpo,
espaços desencarnados (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 339- 340).
Foto 7:
Fachada dos casarões na orla.
Foto 8:
Fachada dos casarões na orla x casarões reais precários.
Durante nosso roteiro crítico algumas estudantes estavam
passando pela orla e ficaram curiosas ao nos avistarem, já que estávamos em grupo,
fantasiados de turistas, usando sombrinhas coloridas. Algumas começaram a
conversar e perguntaram a nossa procedência. Rapidamente incorporei uma turista
italiana e questionei as estudantes, usando a língua e sotaque italiano,
indagações que faziam parte da nossa crítica: Onde estão as árvores típicas da
cidade? Aqui está muito sol! Queremos sombra! As alunas não estavam muito
preocupadas com a sombra, e sim com o
fato de eu estar satisfeita ou não com a visita, perguntaram se gostei da orla e de Cuiabá, algumas começaram
a tirar fotos e gravar vídeos daquela turista vinda de longe, com sotaque
diferente.
Foto 11:
Dove esta la Manguera?
O interesse das estudantes não estava nas questões públicas
indagadas mas sim no suposto exótico, em quem “veio de fora”. Essa situação
exprime questões relevantes da nossa condição eurocêntrica e da negligência da
maioria da população local com o seu entorno e questões urbanas, e ressalta a
grande indolência e a inexistência de
questionamento e indignação entre muitos cidadãos quanto as verbas e
projetos inacabados ou precários. Além disso é possível perceber não só entre cuiabanos
mas no perfil dos brasileiros uma baixa estima e um descaso e comodidade em
relação as questões políticas nacionais.
Portanto o roteiro irônico e performático na orla colocou
em evidência a arte como problematizadora, salientou as questões urbanas e
explicitou os conflitos dos espaços públicos descontruindo os padrões que a
sociedade insiste em não ver.
Trata-se
da arte que poderia ser vista como uma forma de ação dissensual, de construção
de espaços dissensuais ou conflituosos, uma possibilidade de explicitação
desses conflitos, ou, ainda, como uma potência questionadora de consensos
estabelecidos e, sobretudo, explicitadora de tensões do/no espaço público
diante dessa atual despolitização consensual. (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 342)
Foto 12:
espaço público: zona de conflito.
Referências
BRITTO, F.D, JACQUES, P.B. Corpocidade: Arte enquanto Micro-Resistência Urbana. Revista de Psicologia, v. 21 – n. 2, p.
337-350, Maio/Ago. 2009.
CARVALHO, A. L. P. de. O turismo como produto da indústria
cultural nas enunciações da mídia. In: PAIVA, C. C. de; BARRETO, E. B.;
BARRETO, V. S. (Orgs.). Mídia & Culturalidades: análises de produtos,
fazeres e interações. João Pessoa: Universitária, p. 277-297, 2007.
JACQUES, P. B. Espetacularização
urbana contemporânea. In: FERNANDES, A.; JACQUES, P. B. (Org.) Territórios
urbanos e políticas culturais. Cadernos PPG – AU FAUFBA, ano II, no
especial, p. 23-30, 2004.
ROJEK, C. Decentring leisure: rethink leisure theory. Londres:
SAGE, 1995.
WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da
televisão. Campinas: Ática, 1997.
FATO & NOTÍCIA a informação no seu tempo. Disponível http://fatoenoticia.com.br/orla-do-porto-em-cuiaba-vira-ponto-turistico-com-revitalizacao Acesso em: 6 de abril. 2017.
Desculpe a ignorância da minha parte, caso eu não tenha entendido a ideia.
ResponderExcluirAo meu ver o povo cuiabano (socieddade) se mostra no mercado turistico mais interessado no que vem de fora do que propriamente na valoração da sua naturalidade,isto é notório.! Seja na pouca expressividade cultural receptiva (musica,dança,arte), quanto ao cuidar/preservar os recursos naturais que mesmo degradados ainda se tem em abundância.
Cuiabá é um exemplo de abundantes patrimônios culturais, mas que deixa a desejar em estruras básicas,com adendo aos poucos horários de funcionamentos para visitação.
Na minha opinião, nós que somos envolvidos com o turismo, devemos além de cobrar os agentes publicos tais melhorias, devemos nos reciclar e agir em prool da valorização dos nossos bens.