terça-feira, 16 de maio de 2017

Roteiro Turistico Cuyavera Magic Oeste World: O espetáculo vai começar!


                                                                   Bruna Mendes de Fava



Os atuais projetos urbanos contemporâneos, ditos de revitalização urbana, estão sendo realizados no mundo inteiro de acordo com uma mesma estratégia: genérica, homogeneizadora e consensual [...] transformam os espaços públicos em cenários, espaços desencarnados, sem corpo, pura imagem. As cidades cenográficas contemporâneas estão cada dia mais padronizadas e uniformizadas. Espaços destituídos de seus conflitos inerentes, dos desacordos e dos desentendimentos, ou seja, são espaços apolíticos (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 341).
O roteiro turístico Cuyaverá Magic Oest World na orla do Porto objetivou através da ironia levantar questões relacionadas ao trecho a cima, que geralmente não são analisadas em nosso contexto cotidiano como a artificialidade dos espaços públicos da cidade, que estão cada vez mais homogeneizados e excludentes, maquiados pelos governantes que tentam esconder as irregularidades, entroncamentos, e deficiências das áreas de convivência. O espaço público é “zona de conflito", já que pertence a cidadãos que apresentam posicionamentos, gostos, valores e classes sociais distintas, mas que deveriam conviver e ter o direito de usufruir de áreas urbanas comuns.
O bairro do Porto é um dos mais antigos da cidade de Cuiabá e possui patrimônios culturais materiais e imateriais relevantes para a cidade, como os casarões antigos que abrigavam a elite cuiabana século XVIII ( REVISTA FATO E NOTÍCIA, 2016), os aspectos culturais da cuiabania, o linguajar do povo antigo que mora na região, seus modos de fazer e costumes, além de ter sido a orla do rio local de grandes trocas comerciais realizadas, onde embarcações atracavam e subsidiavam a cidade com mercadorias e mantimentos.
Foto 1: Placa turística “Novo Porto”.
Embora a orla tenha passado por um processo de “revitalização”, o que se percebe é justamente a não vida, já que não foi considerada a aproximação da população local e da vivência de seus regionalismos, não foram realizadas mudanças efetivas em nossos casarões e o Rio Cuiabá ainda continua impróprio para utilização.
A experiência performática na orla do Porto teve o intuito de criticar a transformação do local, pautada na construção de um panorama artificial que maquia a responsabilidade do poder público no processo de gestão e manutenção da cidade e enfraquece os regionalismos e as tradições, além de descaracterizar e tornar superficial e previsível a vivência em um espaço público, negligenciando o que é importante e essencial.
O cenário da orla foi inventado através dos protótipos de casarões antigos e árvores atípicas de fácil implantação, que escondem e tiram o foco de questões consistentes e importantes para a cidade, como a efetiva restauração dos casarões antigos, muitos em estado deplorável e a diminuição das áreas verdes e vegetação típica do entorno do município.
A não vida se deve ao uso da espetacularização urbana como estratégia de padronização e privatização dos espaços públicos que “acaba resumida à utilização e circulação disciplinadas por princípios segregatórios, conservadores e despolitizadores que conferem um sentido mercadológico, turístico e consumista ao seu modo de operação” (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 338). O enfoque turístico foi o que balizou a nossa crítica, e nos fez pensar em um roteiro que ironizasse o fazer turismo e colocasse em evidência a encenação e a maquiagem da realidade. Mas por que o turismo pode nos remeter ao processo de espetacularização urbana?
Por mais que o ser humano viaje desde tempos pretéritos por motivações diversas, como sobrevivência, conquista de territórios, religião, saúde, comércio, esporte e posteriormente lazer, o turismo enquanto atividade econômica é um fenômeno contemporâneo. Portanto suas dinâmicas e processos são constantemente atravessados pelos padrões e homogeneidades  inerentes ao contexto capitalista e globalizado que estamos imersos.
Moraes e Gândra (2016) abordam o turismo contemporâneo diretamente relacionado a contextos espetaculares que, de acordo com a dinâmica de cada destino, apresentam  proporções que vão desde o micro ao megaespectáculo,  e que  envolvem a “dramatização/teatralização, diversão e ruptura das regularidades, [...] do monológico ao interativo, do presencial/corpóreo ao midiatizado. [...] Os lugares preparam-se para captar e direcionar o olhar do turista, bem como este busca determinados aspectos locais já consagrados”. (MORAES, GÂNDRA, 2016, p. 1-14).
Mas por que existe esta necessidade de representação e ruptura das regularidades se uma das principais motivações dos turistas é justamente conhecer novas realidades diferentes do seu entorno habitual? Alguns autores abordam essa questão por perspectivas semelhantes.
 Jaques (2004) salienta que a concorrência entre as destinações turísticas e os investimentos estrangeiros fazem com que os gestores destes lugares gerem estratégias de consolidação e destaque no mercado, o que faz com que a iniciativa privada e poder público de cidades turísticas procurem consolidar e vender uma marca da destinação, e portanto se empenham para minimizar as irregularidades através da criação de destinos cenográficos cada vez mais homogêneos e uniformes.
Wolton (1997) também coloca que os responsáveis pelo desenvolvimento turístico querem mostrar um cenário sem imperfeições para os turistas e portanto escondem as questões e conflitos sociais, o que também é ressaltado por Rojek (1995, p. 62): “A ideia é remover “os elementos caóticos” da realidade”.
Carvalho enfatiza que o objetivo da destinação é cativar o turista, e nesse contexto apesar de perdas das paisagens naturais e na cultura original o objetivo é vender paraísos turísticos:
Os “paraísos turísticos” difundidos pela mídia como fantasias realizáveis são consumidos em modelos padronizados de estrutura com perdas na paisagem e na cultura originais, transformados em cenários artificiais onde se desenrolam espetáculos devidamente ensaiados para cativar o turista (CARVALHO, 2007, p. 294).
Portanto fazer turismo se tornou em muitos contextos participar de uma representação em um cenário fake (falso, fictício) especialmente criado para satisfazer necessidades dos turistas. Connell (2005, p. 764), ressalta que às experiências do pós-turismo privilegiam o “simulacro”, ou seja, “[...] deram origem à emergência do conceito de hiperrealidade no turismo, em que o limite entre a realidade e fantasia são indistinguíveis".
Nesse perspectiva o termo turistificação (assim como outros termos colocados por Jaches (2004) museificação, musealisação, estetização, gentrificação, culturalização, patrimonialização) é utilizado em situações de espetáculo que não necessariamente ocorrem durante viagens mais que priorizam “a lógica do consumo” (BRITTO, JACQUES, 2009) e que de algum modo transformam a realidade da cidade.
A performance no Porto ocorreu no dia do aniversário de Cuiabá (8 de abril de 2017), a cidade além de completar mais um  ano comemorou nessa data 298 anos de existência. A ironia da data, e a experiência como um todo colocou em evidência a crítica ao fazer turismo em um cenário espetacularizado. Com a finalidade de questionarmos nossa própria cidade, nos fantasiamos de turistas caricatos, com  filtros solares, óculos escuros, chapéus de proteção ao sol intenso, água e camiseta que uniformizava o grupo, e remetia a padronização do espaço urbano que contemplávamos. As sombrinhas também compuseram o cenário turístico, com objetivo de evidenciar a ausência de sombra nos espaços públicos, o que dificulta a convivência nos supostos locais de socialização.

Foto 2: Turistas do pacote Cuyaverá Magic Oeste World.
Criamos um painel para fotos, que geralmente encontramos em destinações turísticas, o qual colocamos o rosto e “fazemos de conta”, que compomos o cenário da foto.  Esse cenário geralmente está contido de imagens de elementos consagrados da região, no nosso caso elementos “típicos” do Mato Grosso e do Pantanal: os casarões antigos, as araras, o tuiuiú e o jacaré.



Foto 3: Turistas contribuindo para o marketing.
Foto 4: Fila dos turistas para fotos no painel regional.
As questões que surgem nesse contexto são: se estou em uma localidade que apresenta regionalismos e elementos que a identificam e que expressam suas particularidades, por que é necessário criar um espaço fictício que compõe esses elementos,  já que subentende-se que eles estão a nossa volta no espaço de visitação? Por que ao invés de criar casarões, fauna e flora fictícia em um painel de fotos, não são criadas ações efetivas para a saúde e bem estar das espécies regionais como a despoluição do rio, reflorestamento e restauração efetiva dos vários casarões de Cuiabá? Por que não existiu a preocupação com esses “atrativos turísticos” na revitalização da orla do Porto? As localidades são heterogêneas, e apresentam contradições que merecem ser mostradas e não sucumbidas do processo. Talvez seja mais fácil, e conveniente  para os gestores públicos criarem um espaço artificial padronizado do que lidar com as complexidades, particularidades, investimentos e mudanças mais consistentes em cada região.
Além disso, quando turistas e cidadãos locais colocam o rosto e gravam a imagem no painel inventado, registram o consentimento à proposta e implicitamente concordam com o cenário construído, e não percebem que são usados como ferramenta para mais turistas se inspirarem e comprarem pacotes, ou seja, tornam-se mais um objeto de marketing e vítimas do consumo. “A “turistificação” das cidades é fortemente ancorada à lógica de consumo típica dos contextos espetacularizados, generalizou-se como um padrão interativo entre pessoas e lugares, que opera, inclusive, em circunstâncias sem qualquer apelo turístico” . (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 345).
Outra crítica da performance inclui especificamente a questão pública de restauração dos casarões antigos. Através de imagens de casarões em condições precárias tiramos fotos em frente aos protótipos de casarões arquitetados na orla. Em algumas delas tampávamos nosso rosto expondo os contrastes da imagem real e contexto artificial criado.

Fotos 5 e 6: Constrastes casarões reais x protótipos de casarões e seus cenários da orla.
Os modelos dos casarões implantados exprimem a artificialidade e as contradições das ações do poder público. Embora tenhamos enraizados vestígios histórico-culturais que carregam nossas tradições nas paredes de dezenas de casarões no Porto e em outros pontos da cidade, não existiu investimentos na reforma, manutenção e salvaguarda desses patrimônios que correm o risco de perderem os vestígios originais e até desmoronarem pelo descaso dos governantes e responsáveis.
Os investimentos em arranjos cenográficos e a negligência de questões profundas dos verdadeiros casarões repercutem em uma vivência rasa da cultura local,  o que Britto e Jacques (2009) chamam de empobrecimento da experiência urbana, que é a forma como as cidades contemporâneas e seus habitantes se configuram, enfraquecendo seu “espaço de participação civil e de produção criativa e de vivência”, o que pode ser visto claramente nos cenários inventados no Porto, nas fachadas dos casarões e também nas árvores implantadas. “O empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a um empobrecimento da corporalidade, os espaços urbanos tornam-se simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 339- 340).
 Foto 7: Fachada dos casarões na orla.



Foto 8: Fachada dos casarões na orla x casarões reais precários.

Durante nosso roteiro crítico algumas estudantes estavam passando pela orla e ficaram curiosas ao nos avistarem, já que estávamos em grupo, fantasiados de turistas, usando sombrinhas coloridas. Algumas começaram a conversar e perguntaram a nossa procedência. Rapidamente incorporei uma turista italiana e questionei as estudantes, usando a língua e sotaque italiano, indagações que faziam parte da nossa crítica: Onde estão as árvores típicas da cidade? Aqui está muito sol! Queremos sombra! As alunas não estavam muito preocupadas com a sombra,  e sim com o fato de eu estar satisfeita ou não com a visita, perguntaram se  gostei da orla e de Cuiabá, algumas começaram a tirar fotos e gravar vídeos daquela turista vinda de longe, com sotaque diferente.


Foto 11: Dove esta la Manguera?
O interesse das estudantes não estava nas questões públicas indagadas mas sim no suposto exótico, em quem “veio de fora”. Essa situação exprime questões relevantes da nossa condição eurocêntrica e da negligência da maioria da população local com o seu entorno e questões urbanas, e ressalta a grande indolência e a inexistência de  questionamento e indignação entre muitos cidadãos quanto as verbas e projetos inacabados ou precários. Além disso é possível perceber não só entre cuiabanos mas no perfil dos brasileiros uma baixa estima e um descaso e comodidade em relação as questões políticas nacionais.
Portanto o roteiro irônico e performático na orla colocou em evidência a arte como problematizadora, salientou as questões urbanas e explicitou os conflitos dos espaços públicos descontruindo os padrões que a sociedade insiste em não ver.
Trata-se da arte que poderia ser vista como uma forma de ação dissensual, de construção de espaços dissensuais ou conflituosos, uma possibilidade de explicitação desses conflitos, ou, ainda, como uma potência questionadora de consensos estabelecidos e, sobretudo, explicitadora de tensões do/no espaço público diante dessa atual despolitização consensual. (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 342)


Foto 12: espaço público: zona de conflito.

Referências
BRITTO, F.D, JACQUES, P.B. Corpocidade: Arte enquanto Micro-Resistência Urbana.  Revista de Psicologia, v. 21 – n. 2, p. 337-350, Maio/Ago. 2009.
CARVALHO, A. L. P. de. O turismo como produto da indústria cultural nas enunciações da mídia. In: PAIVA, C. C. de; BARRETO, E. B.; BARRETO, V. S. (Orgs.). Mídia & Culturalidades: análises de produtos, fazeres e interações. João Pessoa: Universitária, p. 277-297, 2007.
JACQUES, P. B. Espetacularização urbana contemporânea. In: FERNANDES, A.; JACQUES, P. B. (Org.) Territórios urbanos e políticas culturais. Cadernos PPG – AU FAUFBA, ano II, no especial, p. 23-30, 2004.
ROJEK, C. Decentring leisure: rethink leisure theory. Londres: SAGE, 1995.

WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. Campinas: Ática, 1997.
FATO & NOTÍCIA a informação no seu tempo. Disponível http://fatoenoticia.com.br/orla-do-porto-em-cuiaba-vira-ponto-turistico-com-revitalizacao Acesso em: 6 de abril. 2017.







    

Um comentário:

  1. Desculpe a ignorância da minha parte, caso eu não tenha entendido a ideia.
    Ao meu ver o povo cuiabano (socieddade) se mostra no mercado turistico mais interessado no que vem de fora do que propriamente na valoração da sua naturalidade,isto é notório.! Seja na pouca expressividade cultural receptiva (musica,dança,arte), quanto ao cuidar/preservar os recursos naturais que mesmo degradados ainda se tem em abundância.
    Cuiabá é um exemplo de abundantes patrimônios culturais, mas que deixa a desejar em estruras básicas,com adendo aos poucos horários de funcionamentos para visitação.
    Na minha opinião, nós que somos envolvidos com o turismo, devemos além de cobrar os agentes publicos tais melhorias, devemos nos reciclar e agir em prool da valorização dos nossos bens.

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